2007-01-24
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


O AVENTAL       



Helena fala-me de Jacinta Flor. Recorda-a entre irónica e triste. Na altura parecia-lhe zangada, agora sabe que era triste, porque a zanga não existe, é apenas uma distorção da tristeza, quando esta se torna impossível de encarar. Ou de mostrar. Então, o ser encontra a máscara, o filtro que é a zanga, a emoção falsa a ocultar o sentimento verdadeiro. A tristeza é o que nos move ou imobiliza. A zanga esconde esse movimento da tristeza. Ou essa rigidez. Máscaras. Imóvel, torna-se esgar; em movimento, é raiva, agressividade.

A tristeza de Jacinta Flor era mais um esquecimento de si, digo, do corpo, com excepção do belo avental bordado que colocava quando ia de passeio ou em viagem. O avental era, para ela, um símbolo. Como dizem que é para os maçons, os ferreiros, os pintores, os cozinheiros, os padeiros, os escultores, os pintores. Símbolo de protecção e trabalho, ou serviço. Ou submissão. Para os ferreiros, os pintores, os escultores, os cozinheiros, os maçons, serviço da criatividade, da arte, do ofício, do trabalho pela humanidade. Para Jacinta Flor significava submissão ao enorme sinal de interrogação, ao absurdo que a vida lhe era.

E continua, Helena.

- Hoje ouvi o nome dela, estava num consultório e ouvi chamar o seu nome.

- Tens a certeza? Não é um nome comum…

- Por isso mesmo… fiquei alerta. O nome foi repetido. Para eu ouvir!

Aqui, calei-me. Quando Helena se põe com estas coisas, não vale a pena insistir.

Mas não me contive muito tempo:

- Para tu ouvires para quê?!

- Só para eu ouvir. Para não me esquecer dela. Para não me esquecer que existe um abismo entre o avental de submissão e o avental do serviço. Com o primeiro és escrava. Com o segundo és livre. Dás porque queres, dás porque te sobra, porque já deitas por fora, dás porque precisas de dar, dás porque isso te põe feliz, dás porque tens a mais. Não cobras, não precisas. Com o outro, dás o que roubas a ti mesma. Dás osso, sangue e alma. Dás e morres. Depois de te arrastares a suplicar que te paguem.

No serviço, dás e vives. Quanto mais dás, mais recebes. Não podes parar de dar, como as mães que têm excesso de leite. Reter o leite faz caroços. Dar o leite dá alívio e bem-estar.

- Tudo isto porque…?

- Porque ouvi, no consultório, chamarem pela minha avó, e…

- A do avental?

- Essa.

- Por que usava avental? Era criada de alguém?

- Apenas dela mesma. E até tinha uma criada. Que não usava avental… Não é estranho?

- E o dela? Como era esse avental? Para que o usava?

- Nunca percebi. Era lindo, bordado por ela. Não era um avental de trabalho. Não era avental de serviço…

- Deu e…

- Morreu.

- E agora, que podes fazer com isso?

- Justificar o sacrifício, fazer com que não se torne inútil…

- Como?!

Foi neste momento que Helena desembrulhou um objecto que percebi ser um belíssimo avental, belo como uma obra de arte, mas que não compreendi se era de cozinheira, de pintora, de escultora, de maçon ou de ferreiro ou alquimista. Uma coisa era certa: não era um avental de submissão. Quanto ao resto, ela não me quis dizer. Cada vez tem pior feitio. Mas ia feliz, com o seu avental semi-desembrulhado debaixo do braço.

risoletapedro@netcabo.pt
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