2007-01-17
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


AS MINHAS “FICÇÕES”       



Recuo ao último ano. São dez horas da manhã de uma solaríssima quinta-feira de Dezembro e eu sou uma afortunada. Do enorme terraço deserto mesmo em frente ao rio, partilho o pequeno-almoço com os pássaros. Eles comem o pão, eu como o queijo, eles amam o folhado, eu o recheio do pastel de nata. Uma criança que foi filha única e que se mantém criança e filha única, tem esta agora reconhecida qualidade de saber divertir-se sozinha quando está sozinha. E quando está com os outros pode sempre optar entre divertir-se com os outros ou sozinha, se a segunda hipótese for mais aliciante. E ninguém dá por nada. Observo as pessoas, pequenas, lá em baixo. É-me impossível observar, ou cruzar-me ou ser interpelada por alguém ou algo e quanto mais desconhecido, mais isto me acontece, sem lhe inventar instantânea e compulsivamente uma vida. Gostaria um dia de poder confrontar toda a gente com quem me tenho cruzado (ou nem isso, mesmo aqueles só de longe observados) com as histórias que lhes inventei. Nem mil vidas chegariam, nem mil e uma noites.

Lá em baixo, duas senhoras à volta dos sessenta e tal. Confidencia uma que o marido afinal decidiu passar o Natal com a família. Não está feliz. Está vitoriosa. Como estará a secretária? Aquela que afinal vai passar o Natal sozinha ou pelo menos sem o marido da senhora lá de baixo? Triste ou derrotada? Ou nada disso? Não poderia bem ser esta rapariga morena que acabou agora de se intrometer aqui no terraço e que, percebendo que eu tenho direitos de quem chegou primeiro, se foi sentar ali naquele extremo? Pode ser ela, mas não parece particularmente aborrecida com a história. Talvez, até, a sinta aliviada. Ali vem um rapaz ter com ela, traz o tabuleiro dos sumos. Agora percebo. Ainda bem que as duas lá de baixo de nada suspeitam do que se passa aqui no terraço. Ainda lá em baixo, duas raparigas altas e estreitas, com ar de falta de sol olham em torno como desbravando, com ar de pioneiras ou de colonizadoras. Já tinham ouvido falar da EXPO mas eram ainda muito novas quando se deu o evento. É a primeira vez que cá vêm. Vivem juntas. Amam-se. Pensam elas. Não por muito mais tempo. Esta viagem vai transformá-las.

Na aparelhagem, uma música qualquer de plástico. Subitamente interrompe-se e ouvem-se uns sons de remos. Depois, continua o plástico. Nova interrupção. Parece água a correr num lava-louças; é mesmo estranha, esta música ambiente. Agora é o som de um autoclismo. E eu imagino o leitor a pensar: “Que imaginação desaustinada tem esta mulher!”. E eu nunca vou conseguir provar que isto aconteceu mesmo, que não é preciso inventar nada, às vezes é preciso dizer à vida: “Aguenta aí um bocadinho, amiga, que eu não tenho páginas para tanta ficção, tanta imaginação!”. Porque vão responder-me: “… mas tu és especialmente propensa a que te aconteçam coisas…” e que posso eu argumentar contra isso? Não tenho explicação para o facto. Na aparelhagem continua a ouvir-se água a correr; a ex-rapariga do esposo da senhora lá de baixo e o seu companheiro de bandeja dos sumos não parecem ouvir a música, ou não parecem, pelo menos, estranhar estes sons de autoclismo e de lava-louça na aparelhagem do terraço do Parque das Nações, logo pela manhã. Só eu é que ouço?! Só eu é que estranho?!

Imagino o DJ. O sonho dele é um sonho de guerrilha. Pelo meio dos sons de plástico podia meter Bach, Verdi, Mozart, mas já ninguém estranhava, estão habituados aos anúncios de televisão, por isso pelo meio das músicas de plástico para que lhe pagam, ele vai introduzindo sons líquidos do quotidiano com que se imiscui e intervém e altera, o inconsciente colectivo. A ideia dele é tornar líquidos os cérebros de plástico, lavá-los a uns e deitar pelo WC os outros, os que não forem laváveis ou recuperáveis. Outros, sabe-se lá... Até onde nos poderá transportar este som da água regularmente insinuado pelo meio dos “Top Mais”?

São dez horas da amanhã de uma quinta-feira solar de Dezembro, eu estou rodeada por duas senhoras de sessenta e tal que subiram as escadas rolantes e vieram cá a cima tomar o pequeno-almoço; uma delas ainda olhou para a rapariga do rapaz da bandeja dos sumos com um ar desconfiado, mas a rapariga está tão enlevada quase a saltar para os olhos do rapaz, que rapidamente perde o interesse; duas raparigas magras com ar de estrangeiras tropeçam na escada e riem-se muito, o rapaz da bandeja repara nelas e olha fixamente uma, que ri particularmente alto; na aparelhagem, um DJ completamente louco faz escorrer, pelo autoclismo, uma fuga de Bach e um Hit da Madona, e aquela menina ali, a caminho da adolescência e com ar de filha única e um nariz espetado e satisfeito de quem secretamente acabou de se divertir, dá umas últimas migalhas aos passarinhos, pega no bloco e sai. Vai à procura do DJ.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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