Risoleta Pinto Pedro
COMO UM PERFUME
Não é fácil terminar um espectáculo em decrescendo de ritmo e velocidade, de palavras e som, de personagens em cena. Não é fácil fazê-lo sem perda de força, de intensidade. No entanto é possível fazê-lo e com isso atingir-se o clímax. Vejamos os ingredientes com que tal se fez, ou pelo menos aqueles a que fomos sensíveis, aqueles que a nossa pele/alma/percepção conseguiu sentir: Uma personagem em cena, uma tremenda força interior com a violenta doçura de um vulcão que já explodiu e agora está em repouso até à próxima explosão, uma mulher que se desloca entre as mesas e com uma extrema simplicidade carregada de intensidade ritual, apaga as velas uma a uma como se não houvesse mais nada na vida para fazer e como se, ao apagar cada vela, assim iluminasse qualquer outro ponto do mundo que apenas ela e só ela conseguisse ver.
Resplandece a luz, mesmo na mais profunda obscuridade.
Falamos do final de “A Festa de Babette” em cena no Convento de Cristo, em Tomar, pelo grupo FATIAS DE CÁ. Uns momentos antes, eu pensara cá para mim: “Como é que eles agora vão descalçar esta bota?”. A “bota” era: após uma primeira parte plena de dinamismo nas intervenções, na movimentação, na narração, seguida de uma longa pausa para o jantar em que o “palco”, digo, a mesa das personagens, no centro da cena, se dilui, face à circunstância dos “espectadores”, eles mesmos ocupados com o seu próprio jantar, eles mesmos em cena, como é que após esta quase pausa ou inversão cénica, se retoma o fio da dramaticidade e se recupera a expectativa direccionada para o que seriam as reacções das personagens àquele jantar, que o mesmo é dizer-se, àquela obra de arte ou acontecimento alquímico criado por Babette, a cozinheira francesa?
Porque era disso que se tratava: de que modo a austeridade espartana/religiosa de um grupo constituído por pessoas reprimidas nos seus impulsos mais naturais ligados ao conforto/prazer do corpo (podia dizer da alma, que era a mesma coisa, mas digo assim, para quem não goste de misturar as coisas que afinal não é possível separar) reagiria a uma obra de arte que lhes entrasse nas células? Porque era disso que se tratava. Na minha leitura, é disso que, em última e primeira análise, trata este espectáculo: por um lado a incontornável submissão/rendição/compulsão do artista ao seu impulso criativo, que pode ser reprimido, adiado, escondido durante algum tempo, mas nunca morre e um dia sai em forma de grito, de espasmo ou de orgasmo, e por outro lado, os efeitos que tem esse grito/espasmo/orgasmo em quem o… incorpora.
Na verdade a palavra é esta: incorporar. Ou entra na pele ou não entra. Uma escultura, um filme, uma pintura, uma instalação, um happening, um espectáculo, uma peça musical, ou entra na pele e nos transforma, ou se perde nas esferas como se nunca tivesse existido. Este espectáculo, a Festa de Babette, fala de uma outra obre de arte, a maioria das vezes desprezada, pelo menos enquanto arte, que é a divina alquimia de transformação do cru em cozinhado manipulando requintadamente as texturas, sabores, tons e cores, cheiros e até sons. Falamos de comunhão. Babette dá-se, oferece-se quase como o “Aquele” que diz: esta é a minha carne, este é o meu sangue, comei-me, bebei-me e fazei isto em memória de mim. É uma arte completa. Não se limita a entrar na pele: delicia e estimula o olhar, penetra pelas mucosas do nariz, a textura acaricia-nos os lábios e os canais internos quando é ingerida pela boca, os ouvidos atentos também não são alheios aos delicados sons de alguns alimentos, mistura-se no sangue e percorre os órgãos todos, do rim ao pulmão, escorre no sangue e percorre as células, transforma-se em escultura no estômago, no intestino, passamos a ser nós a escultura viva moldada pelo impulso criador de quem cozinhou. Isso produz alterações no corpo, na alma e no espírito. O dever ou a necessidade torna-se festa. A alquimia fez-se, as personagens, antes relutantes, agora sob o efeito poderoso e amoroso dos sabores de Babette renderam-se ao prazer e ao amor, porque não tinham como não fazê-lo, como quem reage homeopaticamente aos efeitos de um benéfico veneno porque não há como fugir a isso.
E a grande maravilha de todo este processo é que o maior gozo disto tudo está em quem cria, não em quem consome, excepto se este, por sua vez, manipular o objecto de arte que é ele próprio. E o transformar.
Foi isto que o espectáculo conseguiu mostrar-me a mim, e assim repetir-me a minha verdade. Que é, no fundo, o que esperamos que cada obra desperte em nós, um efeito de acordar do alienado sonho em que se vive quando estamos (assim acreditamos) acordados.
E também que, como alguém já disse e outros repetiram, porque corresponde à verdade deles, e eu volto a repetir porque corresponde também à minha verdade, a arte é (mesmo) para comer.
Ou ainda, como diz uma personagem no final do jantar, já realizado o processo alquímico:
“A piedade e a verdade são paralelas.”
“A justiça e a paz beijar-se-ão.”
“A Graça é infinita.”
Disse-me depois o actor que faz esta intervenção de que acabo de citar algumas passagens, que este texto deveria corresponder ao discurso incoerente de quem bebeu para lá do seu limite. A mim parece-me que nunca se disseram tão profundas verdades.
Verdadeiro quase como uma feliz fatalidade ou condenação, a acontecer quando todos acreditarem que podem criar e como Babette, ainda que em condições adversas, sobretudo em condições adversas, o ousarem fazer. Somos seres condenados a criar. E só agora me apercebo a que ponto me tocou este espectáculo. Como um raro e requintado perfume. Que permanece.
risoletapedro@netcabo.pt
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