2006-11-29
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Conventos há muitos…       



… mas nem todos se prestariam como este (refiro-me ao de Cristo, em Tomar), a uma representação viva de O Nome da Rosa. Por várias razões, a começar pelos símbolos, e não é menos importante a estrutura quase labiríntica desta construção, tal como brilhantemente o testemunha a gravura “escheriana” escolhida para o cartaz da peça. Labiríntica? Sem dúvida, como a intriga, como o raciocínio que conduz à descoberta, dolorosa e antiga como o homem. Tudo muito humano, tudo muito dolorosamente humano, tudo muito divertidamente humano.

É este espectáculo uma peça de teatro? Sem dúvida, mas muito mais.

Não vi todos, nem sequer metade dos espectáculos do grupo “Fatias de Cá” mas já assisti a alguns, e até escrevi sobre eles, sempre com prazer de o fazer. Nem o estilo nem os actores me são desconhecidos. No entanto, tendo mediado desta vez um tempo considerável, foi com surpreendido prazer que assisti à evolução e solidez quer da encenação, quer, sobretudo, da representação, a denunciar indesmentível maturidade. Não é fácil fazer uma peça de teatro dispersa por tantos espaços (refeitório, claustros, cozinha, capela, escadarias, corredores…), mais fácil seria fazer apenas um espectáculo, mas aqui encontramos a feliz síntese entre teatro e espectáculo ou vice-versa, sem nenhum ficar em segundo plano, tudo perfeitamente integrado. Acolhendo o espectador no seio desta magia, fazendo-o rir, sorrir, pensar, comover-se, tomar partido. E digerir, claro. Porque se come. Mesmo. Meu Deus, quanto se come, quantas vezes se come! Frades/freiras em convento que nos tornamos ali, não nos restam muitos mais prazeres… confessáveis.

É o caso de Adzo, o jovem e privilegiado noviço, discípulo de tão notável mestre. Todos os que leram a frescura da ficção que é o Nome da Rosa, sabem do que estou a falar. A personagem principal da intriga (que não vou contar), o franciscano Guilherme de Baskerville , é típica figura renascentista (“avant la lettre”, porque estamos num mosteiro medieval) no que este movimento significou de espírito de curiosidade, abrangência e tolerância.

Pelo labirinto do convento seguimos os actores e vimos a rosa. E o riso. Reflectimos sobre o riso e a fé, o riso que abana a fé mas sem o qual a fé é fanatismo.

A peça começa com música e termina com música. Pelo meio da música, o pensamento cintilante de um ser que poderia estar em qualquer tempo. Sempre houve luz no mundo, pequenas chamas que não permitem o triunfo da escuridão, da superstição, da tirania Começamos por assistir a uma procissão dos frades serpenteando no jardim do convento, frades que no fim fecham o círculo, já se deram os crimes, já passaram pelo duplo caminho do sete, já passaram pela rosa, já passaram por todas as esperanças e todas as desilusões, já arriscaram, já recearam, já abjuraram, já amaram, já mataram, já enlouqueceram. Tudo muito humano. O frade Guilherme investiga crimes com seu olhar terno, tolerante, mas implacável. Implacavelmente fraterno. Fraternamente implacável. É sábio, silencioso, oportuno, crítico, tolerante, paciente, e impaciente às vezes. Lúcido. Uma personagem fascinante no romance como na representação.

E também é preciso falar daquilo que não se vê mas se sabe; que esta extraordinária companhia de teatro tem neste momento uma equipa de cerca de duzentas pessoas, entre actores e pessoal de apoio, que vai buscar os actores onde eles existem: na vida, transformando-os naquilo que eles são: actores vivos, o que imprime ao processo e à representação uma profunda autenticidade e paixão. Contagiantes.

Fatias de Cá é um convento (naquilo que a palavra traz da sua origem: “reunião”) dentro de um convento, ao convento leva pelo menos três conventos: o que o próprio grupo constitui, o dos espectadores e um terceiro, formado por ambos. Fora do tempo.

De muito mais se poderia falar, como a clareza e simplicidade com que ali se mostram outras pedras angulares do romance: a estúpida incompatibilidade entre ciência, pensamento, religião, fé, razão, coração, poder, autoridade, humildade, despojamento, ideias, crítica e aceitação.

Mas o melhor é mesmo assistir ao espectáculo, se é que neste tipo de representação se pode falar em assistir. Não há lugar para o espectador neutro escondido na sua cadeira da plateia. Aqui, ou se vive, ou não se existe. Não há espectadores. Apenas actores. Como na vida. Os que escolhem fazer o papel de espectadores, ainda assim estão a representar. Mas não nesta peça, espectador é personagem que não existe. Estamos todos dentro. Ainda lá estamos. Intemporalmente.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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