2006-10-18
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


A MEIO DA AVENIDA       


… percorrida por carros com Airbag e Abs, no espaço entre o passeio e o descampado, um cigano ajoelha ao lado de uma fogueira onde pôs umas tábuas a arder. E o seu gesto de inclinação sobre as tábuas repete o gesto mítico do primeiro homem que descobriu o fogo. Ali está ele, entre prédios, estrada, carros, descampado e céu, indiferente a tudo. Apenas observa o fogo. Poderia estar no meio de uma clareira na floresta rodeado de animais selvagens tementes do fogo. Se calhar está. Se calhar, neste terceiro milénio tecnológico e massificado, ele é o único representante daquilo que simboliza o início da nossa civilização: o fogo e a possibilidade de cozinhar alimentos, a grande revolução. Ele não teme o fogo. Na estrada as pessoas olham as chamas com um ar amedrontado de quem já não conhece as chamas, mas apenas micro-ondas, lareiras eléctricas, isqueiros automáticos. Talvez por essa razão estejamos todos os verões a ser metodicamente devorados por elas. É-se devorado por aquilo que se teme, por aquilo que não se conhece, por aquilo que se relega para o inconsciente.

Ali ao pé do lume este homem criou uma clareira na floresta de cimento e betão e motores e contentores e apenas está junto a esse milagre que transformou a humanidade. Por esse mesmo fenómeno que transportou os homens até ao betão, assim ele se transporta e a nós com ele, para que não o esqueçamos, e nos faz recuar até esse assinalável primeiro milagre da civilização. E fecha o círculo.

Ele, o cigano, é a porta de entrada e de saída do circuito em que nos fechámos, mas ele próprio não o sabe. Ali está alheio a tudo, atento apenas à fogueira e a si mesmo. Os ciganos são os guardiães da nossa originária liberdade. Este é o único ser livre nesta avenida onde passo e o vejo, porque está para além do tempo. Ele está nos dois tempos e tem todo o tempo do mundo, porque não pensa no tempo. Não se pensa no que não constitui um problema para nós. A fogueira é o transporte de fogo, nave espacial com que viaja para todos os tempos. E é livre. E salva-nos, sem que o saiba. Sem que o saibamos.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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