A MEIO DA AVENIDA
… percorrida por carros com Airbag e Abs, no espaço entre o passeio e o descampado, um cigano ajoelha ao lado de uma fogueira onde pôs umas tábuas a arder. E o seu gesto de inclinação sobre as tábuas repete o gesto mítico do primeiro homem que descobriu o fogo. Ali está ele, entre prédios, estrada, carros, descampado e céu, indiferente a tudo. Apenas observa o fogo. Poderia estar no meio de uma clareira na floresta rodeado de animais selvagens tementes do fogo. Se calhar está. Se calhar, neste terceiro milénio tecnológico e massificado, ele é o único representante daquilo que simboliza o início da nossa civilização: o fogo e a possibilidade de cozinhar alimentos, a grande revolução. Ele não teme o fogo. Na estrada as pessoas olham as chamas com um ar amedrontado de quem já não conhece as chamas, mas apenas micro-ondas, lareiras eléctricas, isqueiros automáticos. Talvez por essa razão estejamos todos os verões a ser metodicamente devorados por elas. É-se devorado por aquilo que se teme, por aquilo que não se conhece, por aquilo que se relega para o inconsciente.
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