Risoleta Pinto Pedro
As viagens
… em forma de desabafo; ou confissão:
Gosto de viagens. De partir, mas principalmente, como bom caranguejo, de regressar. Volto sempre energizada, esperançosa, entusiasmada, plena de ideias de renovação, de reunião, cheia de força para pôr em prática pelo menos algumas delas. Por isso sempre me interroguei por que razão, gostando tanto e sentindo-me tão bem em viagem, não tenho autonomamente o impulso de o fazer. Isto é: sempre preciso que alguém me convide, me desafie, me motive, me convença, me puxe, me empurre, me leve. E lá vou. E gosto. E regresso contente. Por voltar, mas também por ter ido. Por motivação alheia, sem ter o impulso de ir. Ao contrário de tantas pessoas que conheço, viajantes naturais, compulsivos, obsessivos, que ficam com desgosto e partem como quem foge. Nunca foi assim para mim. Quando não vou gosto de estar onde estou, quando parto não fujo de onde me vou, quando regresso não fujo de onde venho, não me refugio aonde chego nem lamento estar a chegar.
Durante muito tempo aconteceu-me uma particularidade, antes das partidas, que era uma ligeira angústia tomar-me na véspera, sentimento não nítido, mais físico que psicológico. Compreendo agora que se tratava do “trauma da primeira viagem”, uma viagem que fiz há muito tempo e de que não me recordo ao nível da consciência, mas que ficou inscrita no mapa da alma. E no meu livro de viagens. Foi uma viagem difícil pelas grandes alterações pelas quais o meu corpo teve de passar, com problemas respiratórios graves, temperaturas extremas, ruídos excessivos, turbulências, apertos, dificuldades nos cuidados médicos.
Uma angústia enorme me ficou dessa difícil primeira viagem planetária que me deixou memórias vivas na pele.
Talvez por isso consiga, desde que me lembro, ter períodos de imobilidade em que sou capaz de ficar horas sem me mexer, a ler ou a escrever, ou a pensar, ou a não fazer nada disto, a não fazer realmente nada, simplesmente ou apenas a olhar o mar, ou o céu. Ou uma parede. Uma espécie de zen natural que partilho com os gatos. É que me foi tão difícil aqui chegar que continuam a apetecer-me longos repousos. Contudo, a vida não me tem permitido descansar muito, pelo menos até uma certa altura. Como alguém muito bem disse, nem sempre a vida nos dá aquilo que gostaríamos mas dá-nos, sempre, sempre, aquilo de que precisamos. E desde cedo me recordo de viagens na minha vida, quer por mudanças constantes de casa, quer, mais tarde, a partir de uma certa altura, imperativos culturais: viagens que tenho de fazer porque vou a tal sítio fazer tal coisa: ou cantar, ou escrever, ou falar. A forma de viajar que me faz mais sentido.
Desde a nossa primeira viagem planetária que nos preparamos para a seguinte grande viagem planetária da qual somos já portadores de bilhete e reserva. São estas duas grandes viagens que pontuam a vida. Há quem escolha preparar-se viajando por dentro, há quem o faça viajando por fora. Há quem se prepare das duas formas. Por isso me imobilizo com gosto, por isso faço viagens mais curtas, mais frequentes e mais conscientes e cada vez com mais gosto. Sem turbulências, sem equívocos, sem problemas, sem longas esperas, sem medos. Assim vou aprendendo a regressar. Sem turbulências, sem equívocos, sem problemas, sem recear as esperas, sem medos.
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