2007-08-08
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


O dedo e a ferida

"Study the past if you would define the future."

Confucius (551-478 AC.)



Conta-me Helena, confidencia-me num sussurro, como quem não quer, como quem não pode deixar de fazê-lo:

Quando era pequenina, havia um menino que tinha um especial talento para, mesmo em saber, principalmente sem saber, lhe revelar a ferida. Então, Helena ficava muito perturbada. A ferida era sempre a mesma: “Por que és tu uma estrangeira? E por que não falas a mesma língua que eu?”

Punha o dedo na ferida, deixava o frasco do álcool à vista e depois recuava levando com ele o algodão. Era um amigo muito misericordioso e pouco caridoso, o que está profundamente certo e totalmente de acordo com a ordem do universo. Precisamente o que ela necessitava, pois já nascera com um estojo de primeiros-socorros e o curso de auto-ajuda

Hoje, ele ter-lhe-ia dito: “Por que te é o corpo um país tão estranho e agreste? Por que te fica a matéria tão apertada na cintura da existência? Por que te é o mesmo mundo um imenso país estrangeiro? Quando reclamas a nacionalidade de aqui? Quando te passeias por aí como sendo de cá, com passaporte e visto? Quando esqueces que um dia terás de regressar e te permites aligeirar um bocadinho as talas? Quando te sentas, quando te instalas? Quando partilhas, quando te soltas, quando desfazes… as malas?”

Deliciosamente, maravilhosamente, duramente brutal.

Ela não sabe como reagiria hoje. Se com a culpa e a vergonha de então, a culpa e a vergonha de alguém apanhada a debater-se no meio do turbilhão… sem elegância e sem garbo. A culpa de se ter deixado cair no centro de um vendaval assim, a vergonha de ser descoberta, de nem sequer saber escondê-lo! Foi sempre esta a sua grande solidão, a impossibilidade da partilha do incómodo dos sapatos desconfortáveis e do espartilho asfixiante que sempre lhe foi a encarnação, ou como alguém que tem permanentemente a fralda molhada e não pode, nem quer, nem sabe, nem ousa pedir para ser mudada. Por não conseguir imaginar, sequer, que tem o direito a uma fralda enxuta. Porque não é culpa de ninguém que a fralda esteja molhada, já que foi mudada sempre que o teve de ser. Confunde-a que o seu sentimento mais íntimo, a sua condição mais antiga, seja tão transparente ao alheio olhar, apesar dos, pelos vistos indisfarçáveis esforços: a condição de clandestina, de não pertencer a esta viagem, de não perceber esta viagem, de não saber de onde partiu nem qual o percurso deste cruzeiro onde todos parecem divertir-se tanto, uns pela demasiadamente transparente alegria, outros com a insuficientemente oculta dor. E ela… com as malas permanentemente feitas ao fundo do beliche, o estojo do “nécessaire” sempre preparado, mas sem encontrar o caminho da saída. Vivendo permanentemente em véspera de viagem: “…ainda não sou de lá, e ainda não cheguei a ser daqui…”

Poderia sentir tudo isto, mas sentiria também o orgulho de se ter transportado até este futuro, sã e salva, passageira foragida no meio de tais perigos. E a gratidão. Ao menino de então, à menina de sempre, a todos os meninos e a todos os dedos apontados a feridas à espera de uma oportunidade de cicatrização. Concluiu dizendo-me que assim vai sendo a excitante rotina dos seus dias. E rematou: “Graças lhes sejam dadas e assim seja, enquanto tiver de ser assim.”

Terminou a confissão com um tímido e ainda receoso sorriso e, pareceu-me, um indisfarçado olhar de alívio: talvez por ter sido, finalmente, denunciada, apanhada na sua clandestinidade, agora revelada. Como o criminoso que já não suporta o peso da sua culpa e suspira de alívio quando é descoberto. Despediu-se com alguma pressa. Talvez, certamente, para ir acabar de desfazer as malas, mudar a fralda, alargar as costuras da cintura, arrumar o estojo de primeiros socorros e enfim, respirar.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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