Risoleta Pinto Pedro
Dores a caminho de Sapadores
Helena sobe uma rua que a levará a casa. É um fim de dia. Ela vem de uma aula de dança. Animada e de pilhas carregadas. Vem de carro, passa por uma paragem onde corpos cansados esperam um eléctrico. Uma mulher negra, forte. Outra, mulata, com ar de brasileira. Ambas com ar modesto. Um homem baixo com uma caixa de tipo ferramentas. Tem ar de vir da oficina. Mais duas ou três pessoas que aparentam todas um ar fatigado. Corpos pesados, puxados pela gravidade, encostam-se à parede; são uma galeria de figuras dignas de uma gravura neo-realista. Rostos inexpressivos ou conformados. São mais insuportáveis de olhar os conformados que os inexpressivos, mas percebe que a inexpressividade de alguns é uma forma de conformação. Ou desistência. Ela apercebe-se de tudo isto num relance, quando passa com o carro acelerando rua acima. Estas pessoas que estão na primeira paragem de uma longa rua vão, certamente, todas para Sapadores. No mínimo até Sapadores. Algumas um pouco mais para a frente. Helena já vai em Sapadores mas ainda está lá atrás na paragem junto destas pessoas. Ela sabe que se tivesse 8, 9, 10 anos, teria parado e teria perguntado se alguém queria boleia para cima. Agora, não tem coragem. Imagina o que pensariam. Teriam medo dela? Imaginariam segundas intenções? Não a conhecem de lado nenhum… ela tem um ar tranquilizador, mas as pessoas andam com tanto medo de tudo…
Recorda que já trouxe, daquela mesma paragem pessoas da sua rua, que a conhecem e por isso foi natural para ela oferecer boleia, e para os outros aceitarem. Mas estas pessoas que não conhece de lado nenhum, como reagiriam elas? Que pensariam? Que diriam? Depois, alguma destas pessoas poderia não ser, ela própria, de confiança. Pensa em tudo isto vertiginosamente, a partir do momento em que passou pela paragem. Pensa circularmente. Sabe que se fosse a menina que foi, que é, mas que está ainda meia-submersa, não teria hesitado. Mas a menina que não teria hesitado não tinha carta de condução nem carro. Esta em que se tornou tem os instrumentos de ajuda, falta-lhe a coragem. Ali vai sozinha naquele carro com quatro lugares vazios. Ali ficaram na paragem aquelas pessoas cansadas. Não é a primeira vez que isto lhe sucede. Não será a última. Um dia terá coragem, esquecer-se-á que é adulta, esquecerá os cuidados de segurança que lhe ensinaram, que não se dá boleia a desconhecidos, etc, esquecerá que vive numa cidade, esquecerá as histórias de roubos e assaltos, esquecerá que não se partilha transporte com pessoas que não se conhece, esquecerá que desconhecidos se olham com desconfiança, esquecerá as histórias e os medos de raptos, tráfico de pessoas e órgãos humanos, esquecerá que as pessoas têm medo, que ela tem medo e deixará flutuar acima de todo este magma pesado como chumbo, a doce e leve e fresca brisa da compaixão, da solidariedade, da naturalidade, da espontaneidade, da humanidade. Em vez de transportar consigo num carro vazio o remorso do arrependimento, o mal-estar da cobardia, abrirá a porta do carro e deixará entrar o ar fresco da simpatia.
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