2007-07-11
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


AGOSTINHO DA SILVA:
SOBRE A SÁTIRA E A COMÉDIA.
REFLEXÃO SOBRE AS REFLEXÕES



(Este texto consiste no registo de uma conferência que fiz há dias no âmbito das comemorações do nascimento de Agostinho da Silva promovidas pela associação de mesmo nome; teve lugar na Galeria Matos Ferreira)

Parte II



Quanto à comédia latina, que trata num outro ensaio, ele vai vê-la, ao contrário da sátira, como o elemento definitivamente corruptor em relação ao que fora a sua origem, que se encontra, por exemplo, na festa das colheitas, como símbolo, por um lado do reencontro do homem com natureza, e com a abundância e o prazer através do vinho, a festa de Dionísio, traduzida em cantos e danças. Mas esta festa traz também em si o paradoxo de que o estado de embriaguês fazia entrar numa consciência mais aguda da contradição das pulsões de prazer com a estreiteza e os limites do mundo.

Este conflito vai ter expressão quer na tragédia quer na comédia. Esta, vai ter a sua focagem nos casos individuais, aquela, a tragédia, é vista em termos colectivos ou de Humanidade. Agostinho acredita que na origem a comédia latina trazia ainda uma ligação importante ao sentido do sagrado e de ligação à natureza, mas afirma que ainda com os gregos mas sobretudo em Roma, e devido às características desta civilização, o sentido do sagrado dilui-se e esta assumiu e acompanhou o processo de dessacralização da Humanidade.

E cito:

“ Do drama de Dioniso, preso nas redes de Apolo, da realidade da vida plena na plena participação com o Universo, e do seu renascimento miraculoso na festa das colheitas, passava-se a um drama realista do mundo, à batalha em que cada um tem que ser ele, e só ele, sob pena de perecer; passava-se ao mundo da família, sustentada pelas leis e não pelo amor, ao mundo político em que se busca apenas o domínio, dos predecessores de Ésquilo aos sucessores de Ibsen, de um acto religioso a um espectáculo puramente civil.”

É essa preponderância do civil e do sagrado que ele coloca em paralelo com a mentalidade romana e a mentalidade grega e que está na base da corrupção da comédia enquanto representação sagrada da reunião do homem com a natureza, processo retomado com o teatro religioso medieval e logo interrompido com o alvor do Renascimento, esse movimento que designa como a “volta a Roma do filho pródigo” e pelo qual não parece mostrar muito apreço. Por isso considera a comédia do nosso tempo a “mais romana de todas as comédias”, o que não me parece exactamente um elogio à comédia nossa contemporânea. E anseia por um teatro sagrado em que a comédia ou a tragédia não preponderassem, mas que fosse pura fantasia, puro sopro lírico, teatro do símbolo, pura dança.

E esta ideia levar-nos-ia até um outro belíssimo texto deste volume, intitulado “Dançarinas de Tânagra” em que fala de uma forma maravilhosa acerca de umas pequenas personagens em terracota representando bailarinas, mas este é um assunto para uma próxima abordagem a Agostinho, essa inesgotável mente.

É muito curioso que neste texto, em que trata a comédia, o tom seja mais sério. Percebe-se a reverência e gravidade que o autor toma perante o tema da sacralização do teatro e a importância que lhe dá. Isto faz-nos pensar, por contraste, na defesa que fez Aristóteles do riso. No entanto, não me parece que para Agostinho o riso tenha de estar retirado do sagrado, vejo mais pelo meio das suas palavras, a diferença entre o riso sagrado e o riso obsceno. No primeiro vê a sátira, no segundo a comédia. O primeiro dança, como os bailarinos etruscos ou como as bailarinas de Tânagra, o segundo marcha, como uma legião romana. (pág. 268/269)

No fundo, aquilo para que chama a atenção em cada um dos ensaios, não sei se de forma consciente, porque não o explicita, mas eu sinto-o, é que o mesmo factor responsável pela absoluta originalidade do nascimento da sátira, que é o sentido crítico, por vezes corrosivo e pessoal, assume na comédia a responsabilidade pela decadência e dessacralização do teatro protagonizado pela comédia latina. E termina o artigo sobre a comédia romana como iniciou o outro sobre a sátira: com a dança. É pela dança que nasce a “satura”, é pela dança que ele preconiza a reabilitação da comédia, já não da comédia romana, mas da comédia em geral: pela criação de uma espécie de comédia ritualística, ou sagrada e litúrgica. Onde a liberdade do riso não se afaste do respeito pelo humano, num ritual de reunião do homem com a natureza, um regresso à natureza através das danças de Dionísio.

Acho, mas não tenho qualquer tipo de prova, que o que Agostinho preconiza é um regresso mais além da origem da comédia, mais além da sátira, sim um regresso às danças das bailarinas de Tânagra ou dos bailarinos etruscos, o riso em forma de música, a palavra como silêncio e o corpo como pura contemplação.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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