2007-07-04
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


AGOSTINHO DA SILVA:
SOBRE A SÁTIRA E A COMÉDIA.
REFLEXÃO SOBRE AS REFLEXÕES



(Este texto consiste no registo de uma conferência que fiz há dias no âmbito das comemorações do nascimento de Agostinho da Silva promovidas pela associação de mesmo nome; teve lugar na Galeria Matos Ferreira)

Parte I

Não falarei de Agostinho como especialista ou estudiosa que não sou, mas como alguém que gosta de ler, que gosta de falar sobre o que leu quando gostou do que leu, e como alguém que se diverte deliciosamente lendo Agostinho e se reconhece nesta escrita de uma forma misteriosamente tocante.

A escolha é sempre um problema: as edições e reedições sucedem-se, os textos dele dispersam-se por inumeráveis géneros e tons, ele mistura-os e torna-os inidentificáveis. Onde começa em Agostinho o ensaio, onde acaba a poesia? Onde termina a biografia e onde se inicia o texto de opinião? Onde se encontra o tom sério e onde nos encontramos com o humor? Impossível responder a isto. Está tudo em todo o lado numa alegre mestiçagem literária e viva.

A dificuldade coloca-se assim face à escolha de um critério para falar de Agostinho: falarei de um género, de uma obra, de uma personalidade, de um estilo, de um livro?

Abro um livro ao acaso (se há acasos…), Estudos sobre Cultura Clássica; folheio-o e os olhos caem-me sobre dois textos, separados por vários outros: um é sobre a sátira, o outro fala sobre a comédia. Procuro em vão e antecipadamente sabendo que não vou encontrar nenhum sobre a tragédia. Não seria de esperar de Agostinho, previsível na sua imprevisibilidade. Corre-me o pensamento, ou cavalga, ou voa, até O Nome da Rosa. Aquela parte em que o monge destrói o segundo volume de A Comédia de Aristóteles, depois de ter matado vários monges, para que ninguém tenha acesso ao riso. O mesmo é dizer, à liberdade, à dúvida, à abertura do coração.

Mas voltemos a Agostinho e ao primeiro texto, sobre a sátira, que ele transcreve como no original: “satura”, que enquanto adjectivo “satur” tem o significado ordinário de repleto, saciado, mas que Agostinho vai pegar pelo outro sentido de “satura”, que significa “mistura”, o que não é a mesma coisa.

Mestiçagem é uma coisa de que ele gosta, que encontra deliciado, no Brasil, e que transfere até para a literatura, para o seu próprio estilo, onde mistura o português dos dois países e todos os estilos e tons literários no mesmo texto.

A sátira é, segundo Agostinho, interpretando Tito Lívio, um dos poucos géneros que na literatura romana se assumem com originalidade, ao contrário da maioria dos outros géneros latinos, com fortes influências e por vezes mesmo decalque dos géneros gregos. Existe um certo mistério em torno desta origem, mas há uma forte inclinação para a hipótese de que a “satura” tenha nascido da dança. Uma dança trazida com intenções ritualísticas da Etrúria, com o fim de aplacar os deuses por ocasião de uma peste que terá grassado em Roma em 390 a.C.

Esta harmoniosa dança dos talentosos bailarinos etruscos terá agradado tanto aos jovens romanos, que passaram a reproduzi-la, embora nem sempre com graça e elegância, o que levou a que os dançarinos romanos introduzissem nestas danças, versos rudimentares onde satirizavam os mais desajeitados ou ridículos de entre eles. Esta sátira rudimentar continha um carácter jocoso, vexatório e grosseiro que, segundo Agostinho era particular apanágio dos romanos.

De qualquer modo, para além desta sátira original onde os dançarinos se dirigiam comentários chocarreiros e inventariavam defeitos mútuos, físicos e morais, de onde derivou a sátira moralista, os romanos cultivaram também o epigrama e a sátira didáctica, que embora tendo alguns pontos de contacto com esta sátira original, apresentam uma parentesco mais claro com a literatura grega.

Aquela sátira originalmente romana acaba por adquirir um carácter moralista por se ter tornado uma sátira de costumes envolvendo aspectos sociais e já não pessoais; apesar da forma como nasceu, sendo até pela não personalização que ela vem a distinguir-se; mesmo quando aponta indivíduos não é à pessoa que alude, mas ao tipo geral. O modo dialogado que lhe vem da sua origem torna-a por vezes numa pequena comédia.

Horácio será o representante e herdeiro mais significativo desta “satura” original, que embora viva, não continha ainda o insulto que vamos encontrar posteriormente em alguns autores. Tem ainda a elegância da dança que lhe esteve na origem. É essa mesma elegância que encontramos na escrita de Agostinho, que aqui se assume em defesa da nem sempre defendida originalidade da arte romana. E apesar da natureza ensaística do texto, ele próprio não se coíbe de usar o estilo entre a ironia e a sátira, que melhor transmitem o estilo crítico que lhe está na natureza. Cito-o:

“ O presente trabalho não pretende de maneira alguma resolver a questão de forma definitiva [refere-se aos diferentes pontos de vista sobre o assunto da originalidade da sátira romana assumidos pelos investigadores franceses e pelos alemães], seria quase loucura tentar uma tal empresa num país em que as bibliotecas estão desprovidas dos materiais necessários a estas investigações.”

Ou:

“… por satisfeito me darei se elas [estas páginas]… contribuam para que se acorde daquela modorra do latim de padre-mestre em que estamos mergulhados e se compreenda que, para se ser humanista, é necessário saber mais alguma coisa do que os versos mais belos do seu Horácio…”

Mas não é só sobre a sátira que Agostinho fala satiricamente assim levando a sério o mais humorístico dos temas.

Tal como eu dizia num texto que escrevi a propósito de Agostinho enquanto poeta, e permito-me citar-me a mim mesma:

“… para encontrar o Agostinho poeta basta abrir ao acaso qualquer um dos seus livros.

Agostinho não separa, ele reúne, até na escrita o faz, é um homem verdadeiramente religioso no sentido mais prático da palavra.”

Assim, igualmente para encontrar o Agostinho satírico não tenhamos a veleidade de o procurar apenas em textos eminentemente críticos, porque a sátira e principalmente a ironia, mais conforme com a elegância do seu pensamento, sai-lhe por todo o lado, e não nos surpreende a sua presença num ensaio como este.

Tal como eu escrevi num outro texto:

“O estilo ensaístico de Agostinho não despreza a ironia, sua forma de estar na escrita e na vida.”

É a reabilitação do riso, o riso como antídoto contra a estupidez e o sofrimento, do medo e da morte. O riso como denúncia do sacrifício e caminho para a cura. Para todo o tipo de cura. Há quem lhe chame salvação. Com ou sem céu. Ou pelo menos com ou sem céu de algodão. No céu ouvem-se risos.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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