2007-06-13
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


RESPIRAR (circular) - Parte III



Imaginem agora um cenário oposto ao da crónica anterior. Não é difícil, é demasiado familiar à maioria de todos nós. Mesmo os que não têm dele memória activa, têm nos corpos e no mais remoto da mente, o registo; a reportagem está lá latente e revela-se a cada minuto da vida, a cada segundo da respiração.

Terceiro terço do século XX. Uma espécie de cenário de filme de ficção científica de há trinta anos: muitas máquinas, muitos aparelhos, batas, máscaras, tubos, tudo muito asséptico, médicos, enfermeiras, correrias, respiração ofegante, gritos de dor encontrando eco na ansiedade que rodeia a cena. O bebé chega e provavelmente nem vai ver a mãe, que tem bastantes probabilidades de estar a dormir sob o efeito de anestesia. O bebé é desinfectado como se fosse um tubo e metido numa cama, num berçário, espécie de linha de montagem de bebés.

Podemos recuar ainda mais um pouco e imaginar um quarto de uma casa particular. Estamos algures no segundo terço do século XX. Os bebés nascem em casa, com uma parteira, se as coisas correrem mal, o que é sempre uma possibilidade esperada, chama-se o médico.

No caso do primeiro cenário o viajante corre vários riscos logo à chegada, desde ser entubado, esfregado, manipulado, atirado de um lado para o outro, retalhado com uma tesoura no pára-quedas que o ligou à mãe. Na hipótese do segundo cenário, existe a forte possibilidade de ser espancado logo à chegada com umas valentes palmadas no rabo, o cordão é certamente cortado de imediato, mas com um bocado de sorte, se as coisas não correrem muito mal, pode ficar a descansar um bocado naquela cama a cheirar a suor e a cansaço e a dor.

Venha o diabo e escolha. O viajante sobrevive porque não tem alternativa. Desde o primeiro momento aprende a dor, a ansiedade, a angústia, a aflição, o sentimento de “como raio é que eu vim aqui parar?”, “como é que se sai daqui?”, “meti-me em boa, que estupidez!”, “agora aguenta.”.

E esquece. Mas não esquece. A respiração aprendida mantém-se: ofegante, curta, ansiosa. Inconsciente. Não é bom ter consciência de uma respiração assim. Só respira, porque para morrer tem de começar por respirar. É apenas um compasso de espera. Difícil, mas aguenta-se.

Mas um dia… um dia! Aconteceu:

“Entrou dentro de si próprio e foi com o ar fresco até aos pulmões e mergulhou no bem-estar e entusiasmo dos alvéolos, os sorrisos de agradecimento… olhou para trás a ver se alguém a quem se dirigia o sorriso o seguia, mas… ninguém! Era mesmo a ele! Esperou um pouco e observou, quando o ar saiu, um tranquilo relaxamento, um adormecimento momentâneo, como um repouso. E repousou. Nova inspiração, novos sorrisos agradecidos e como não se sentiu merecedor deles, resolveu sair com a expiração. Aproveitou o impulso do ar e vagueou pelas redondezas; que encontrou lá fora? Um mundo deslumbrante de beleza. Não sabia quem criara aquilo, não sabia em que revista ou pintura se teria inspirado, mas era mesmo muito belo. Sem dúvida um achado de criatividade e arte e perfeição da técnica. Olhava como se visse pela primeira vez. Precisara de se afastar, de se recolher, para conseguir olhar e realmente ver. Sentiu no centro do seu peito um suave ondular, adivinhou lá dentro o sorriso dos alvéolos, a sesta das células, aprofundou o ar em si e deixou-o sair com suavidade, observando-o, agradecido. Transmitiu-lhe o “obrigado” do seu corpo e pediu-lhe que no voo deixasse onde achasse conveniente, o agradecimento. Desde aí nunca mais se esqueceu de respirar nem de pensar em respirar nem de agradecer de respirar nem de sorrir para dentro, a agradecer o sorriso. E o ar. “

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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