Risoleta Pinto Pedro
A CORAÇÃO ABERTO ou A História de um Ouriço
Helena conta-me uma história que se passou com ela e com um ouriço. Ambos são espécies em extinção. A história impressionou-me. Digo mais: comoveu-me. Não consegui evitar as lágrimas à flor dos olhos. Helena ficou espantada. Não é costume eu mostrar-me assim.
- Desculpa. Não sei em que me tocou esta história, mas não foi certamente o destino do ouriço. Nem sequer o teu. Foi algo de mim que faz parte desse drama. Só nos comovemos com o que nos toca pessoalmente. É isso a empatia. E a compaixão. No fundo, são formas de egoísmo a coração aberto.
- A coração aberto?
- Depois há o outro, a coração fechado. Esse não se deixa tocar, é um egoísmo hermético.
- Vejo aí uma velada censura?
- Nem censura, nem algo de velado, Helena. É só uma variante do medo humano. Tudo muito humano. Não há censura, porque não há culpa. Há gente a esforçar-se como pode. Seja como for, tocou-me muito a tua história. Devias escrevê-la.
- Eu?!! Mas a escritora és tu!
- Lá estás tu a colar-me o rótulo…
- Não consegues perceber? Se eu a escrever, é a minha história que escrevo, não tem interesse, ou é narrativa seca ou lamechice sentimental. Quando eu dizia que a escritora és tu, não era a descartar-me nem a colar-te um rótulo que, queiras ou não, já tens, mas porque sei que tu saberás fazer, ou melhor, que não saberás não fazer como deve ser feito, ou antes, que não saberás como não fazer o que vais fazer.
- Agora não entendi nada, Helena, explica-te…
- Aquilo que escreveu Fernando Pessoa e que foste tu que uma vez me explicaste: “O poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente./. E os que lêem o que escreve/na dor lida sentem bem/não as duas que ele teve/mas só a que eles não têm.” Acho que continua, mas esqueci-me do resto…
E rematou como tanto gosta, o liceu francês de que nunca se libertará:
- Voilà!
- Extraordinário! Percebeste mesmo a ideia…
- …claro, se for eu a escrevê-la é apenas a minha pequena história que escrevo, mas se fores tu, vais fingir a dor que sentiste com a minha história e a que for lida não será a minha, não serão as tuas duas dores, a sentida ou a fingida, nem será a do leitor, mas uma outra que sabe-se lá que dor é, mas imagino que uma síntese da sua própria dor existencial com toda a dor do mundo filtrada pelo coração aberto de um poeta. É a diferença entre desabafo e arte. O desabafo não faz arte, mas a arte pode nascer do desabafo.
- Eu não diria melhor, Helena…
- Foste tu que mo disseste um dia.
- Ah… Está bem Helena, eu escrevo a tua história, a minha história, a história do ouriço, a história de todos os ouriços, a história do mundo..
- Mas… vais escrever um romance, Helena?
- Não te preocupes, apenas um pequeno conto em forma de crónica, talvez apenas um pouco mais longa que habitualmente…
E aqui está como a escrevi. Como quem esconjura um discreto mal-estar, um insidioso incómodo, como quem toma um antídoto contra algo que não sabe o que é ou como quem esconjura um olhado que não sabe de onde veio ou quando o sentiu:
Helena percorre uma estrada do Alentejo que muito bem conhece, contorna as curvas de olhos semicerrados, lentamente, como quem passeia, e ainda bem, porque ali a seguir a uma curva, bem no meio do alcatrão, uma personagem mítica da sua infância, o senhor ouriço, pronto a ser atropelado por algum distraído ou apressado ou por quem o confunda com qualquer objecto atropelável, ou por quem não tenha tido uma infância com ouriços. Helena encosta, pára, aproxima-se, olha-o como quem o censura pelo comportamento suicida, e delicadamente transporta-o para a berma onde estacionou o carro. Reentra, repensa, recua, reaproxima-se, e decide transportá-lo para o outro lado, que era para onde, aparentemente, se dirigia. Retoma o caminho do carro, e mais uma vez volta para trás; afinal, quem lhe garante que o ouriço queria ir para ali?! Helena pega no ouriço e, embora com o coração apertado, recoloca-o no meio da estrada, onde pode vir a ser atropelado. Entre o amor e o respeito, quantos quilómetros de alcatrão? Entre o respeito e a ajuda, quantos pensamentos, quantos sentimentos, quantas dúvidas, quantos medos, quantas hesitações, quantos preconceitos, quantas presunções?
Poderia levá-lo para casa, o que se assemelharia a um rapto. Recordou a gaivota que um dia encontrou à beira-rio, de asa ferida. Trouxe-a para o seu terraço onde a gaivota não via rio, mas os telhados de Lisboa que não conseguia sobrevoar.
Um amigo médico administrou-lhe um calmante, fez-lhe uma tala com que tentou consertar a asa.
No dia seguinte, de manhã, a gaivota ainda estava no terraço, privada do voo, a tala desfeita, uma pintura mural de sangue, à volta. Helena pegou nela e tal como já acontecera, lá a levou, com dificuldade em defender-se do bico, como fortíssimas tenazes.
Chegada ao pé do rio, colocou-a sobre a margem e ficou ali um bocadinho com ela, à espera da morte. Mas a morte estava demorada e Helena não podia esperar. Despediu-se da gaivota com o olhar, despediu-se do ouriço com o olhar, retomou viagem. Acelerou nas curvas para entrar noutro tempo, mas o pequeno vulto do ouriço lá mais atrás no meio do alcatrão não se apagou do retrovisor como imagem plasmada, congelada, que apenas no coração ardente de Helena se foi derretendo pouco a pouco, dissolvida pela lentidão do tempo dos dias. As curvas da estrada lá muito mais atrás…
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