2020-03-18



Risoleta C Pinto Pedro


O amor nos tempos da cólera



Vamos lá então falar sobre pandemia. Nestes dias só me ocorre este título do magnífico livro de Gabriel Garcia Marquez que li, talvez, quase no final da segunda metade da década de oitenta do passado século. O livro narra a história de um amor romântico contrariado que acaba por ter um final feliz, ao fim de meio século. Mas quando me ocorre este título hoje, a ideia de amor que me surge é muito mais ampla.

Num momento em que as manifestações de afecto nos aparecem como perigosas, quer o afecto romântico, quer o familiar e a amizade, e mesmo o contacto com estranhos, torna-se-nos esquisito de repente termos de nos tornar uma espécie de nórdicos, distantes, frios, como se fôssemos já seres alados e sem corpo, uma espécie de anjos.

Ora isto também é uma forma de amor. Uma coisa é um povo não saber ter uma relação táctil por razões culturais, climatéricas, etc, como os nórdicos, e nem pensam nisso, porque é natural assim; outra, como no nosso caso, é não o fazermos de uma forma consciente e para protegermos… a nós e ao outro. O sacrifício na sua dimensão real, etimológica e sagrada. Não se trata de renúncia, trata-se de amor. Uma verdadeira quarentena na Quaresma. E por via disto, todos passamos a valorizar muito mais a pele, o calor do outro, o contacto, a proximidade. Tornar-nos-emos mais ricos emocionalmente, não porque adquiriremos mais riqueza, mas porque tomaremos contacto com a riqueza que já tínhamos e não sabíamos. Isto, a nível pessoal.

A nível colectivo é uma autêntica revolução. Filosófica, social, política.

Subitamente, pelo menos os países afectados deixaram de se preocupar com a guerra. Tudo, porque há um minúsculo vírus que nem se vê, que até tem um belo aspecto (consigo imaginar os pintores inspirados pela sua forma) e que nos paralisa. Os nossos valores ficam de pernas para o ar, os trabalhos deixam de ser importantes, os encontros, os espectáculos, todas aquelas inúmeras coisas absolutamente indispensáveis que de repente deixam de ser prioritárias e podem, mesmo, deixar de ser feitas.

Afinal, os países podem parar e não acontece nada. Pelo menos nada de pior que a guerra. Pelo contrário.

Não falarei aqui dos aspectos nefastos como a doença, o medo, a morte, o colapso das empresas, o açambarcamento, etc, etc, que isso há muito quem faça.

A minha intenção é espreitar do outro lado do véu. Não gosto de pandemias, tenho os mesmos receios de qualquer ser humano, mas sou obrigada a reconhecer que as crianças que somos estão a ser forçadas a aprender algumas coisas que têm a ver com: parar, cuidar-se, cuidar do outro, pensar globalmente, e, pasme-se!, reduzir os níveis de carbono!, coisa impensável anteriormente por impossível. Não era. Como se vê. Chegou primeiro uma menina a dizer que o rei ia nu, e agora aparece o vírus a despir a humanidade. Entre o vírus e o stress, entre o vírus e a guerra, entre o vírus e a poluição, entre o vírus e a loucura, está a ganhar o vírus. Esta guerra tem de ter um fim, a minha pergunta é: esqueceremos tudo depois, quando pudermos abraçar, quando pudermos sair, ou algo vai permanecer?

Estamos em tempo de cólera. Literalmente. Vem aí a Primavera, a estação que, segundo a filosofia oriental, activa o fígado, esse lugar da raiva. Ironicamente, não vai haver muito contexto para a expressar. Deixa de haver brigas no trânsito, gente impaciente para atender nas filas… Raiva anulada, ou pelo menos a habitual oportunidade para a sua expressão humana, resta o amor. Sem beijinhos, sem abraços, sem toque. Mas grande, bem grande. A começar pelos profissionais de saúde, esses anjos sem asas, mas com fatos de protecção. E os funcionários de recolha de lixos, e os dos transportes, e os da alimentação, e, e…

Anda a humanidade há tanto tempo a tentar dizimar-se das mais variadas formas: crimes, guerras, suicídio, maus-tratos, injusta distribuição de riqueza, falta de cuidados de saúde, envenenamento dos solos e da natureza, e parece que não se passa nada. Habituámo-nos. Chega um vírus microscópico com pezinhos de lã e ameaças silenciosas e aqui d’el-rei que nos querem matar! Não estou a desvalorizar o que está a acontecer e muito menos as medidas que estamos a tomar. E que teremos de tomar. Pelo contrário. Estou só a tentar levantar o pano para perceber o que podemos ver para além dele.


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