Risoleta C Pinto Pedro
Presença Viva, Maria Cecília Correia
É um livro pequenino de capa amarela, numa edição simples e despretensiosa, mas plena de discreto bom gosto, ou não fosse o ilustrador, também filho da autora, artista plástico com provas bem dadas. O livro não tem data e mesmo com ela seria intemporal.
O texto é sentido como uma espécie de Cântico de Amor ou Cântico dos Cânticos, que testemunha as emoções de quem escreve. A primeira página é quase premonitória, pois dirigindo-se a Algo ou Alguém que pode ser entendido como o Criador, afirma:
«Tu que és em mim Amor e Aliança e a continuarás em meus filhos e nos filhos de meus filhos, em elos que só Tu conheces».
Esses elos estão agora a ser revelados pela mãos dos filhos, principalmente do seu filho António Castilho, acima aludido, e da filha deste filho, Eleonor Castilho, ambos, embora com o apoio da família, especialmente dedicados, em Aliança, ao trabalho de Amor que é a divulgação da obra da mãe, avó, escritora Maria Cecília Correia.
O presente texto não tem como fim falar dela nem da sua obra, mas deste livrinho. Talvez outros se sigam, mas neste momento é este que me ocupa, porque foi este que se me sugeriu.
Sabe-se, por abundante epistolário entre Maria Cecília e Agostinho da Silva, na posse da família Castilho, da grande amizade entre ambos. E não nos surpreende que a sensibilidade dela fizesse eco na sensibilidade ecuménica e a certa altura cristã, de Agostinho. Como se Maria Cecília espelhasse a alma cristã de Agostinho da Silva.
Nem todos os escritores ousam colocar em letra impressa a intimidade da sua crença, mas esta criadora fala de Deus e com Deus ousadamente. Uma ousadia pela familiaridade quase herética e uma ousadia pela revelação da mesma. Por vezes, em forma de lamento.
Estes escritos procuram captar relâmpagos de consciência, de comunicação ou de Presença («Senti de súbito a frase») e não escondem a frustração pela dificuldade da empresa («parte do que foi meu sentir já sumiu»).
É também um contributo para uma história de amor que ainda não foi escrita, mas que vai tendo, aqui e ali, apontamentos solitários, entre os humanos e a Natureza, a Terra, as árvores, as flores («Como é bom ouvir as folhas do choupo»).
Da fácil e quase exclusiva relação com um Deus Natureza dá conta, em honesto lamento, da dificuldade do relacionamento humano, do ser com os irmãos, de como são opacas as pessoas, de como é difícil, através delas, a visão de Deus. Mas é também na insuficiência e na imperfeição que surge a comoção com as coisas simples e naturais, como as estrelas e a nuvem. É uma escritora atenta, que ouve a respiração de Deus: «E lembrei-me do ribeiro: ontem, ele respirava!».
Consciente ou inconscientemente não resiste, como muitos poetas, à verbalização da sua arte poética: «Como podem as coisas, banais muitas vezes, ser logo transcendentes e cheias de significado?». Trata-se de uma estética da grandeza do pequeno, do simples, do que não costuma ser visto ou valorizado. Ou da Natureza enquanto linguagem de Deus. No fundo, o Evangelho segundo Maria Cecília Correia.
Extraordinária escritora, de rara sensibilidade aliada a um pensamento de raiz, que apoiada na cultura em que nasceu, vai muito para além dela, sobrevoa o mistério da religião que lhe poderia ser berço à criação, mas que afinal é nave, porque está vestido da luz do espírito, autónoma e leve, por isso se eleva e liberta do que já foi escrito.
Encontramos as mesma interrogações na boca das personagens e dos profetas dos livros religiosos ou na boca dos adolescentes. Nesta escrita se reúne a inocência da pergunta do jovem, o pressuposto teológico do Livro e a perscrutação poética. E assim cria um pequeno e enorme tratado poético de ecologia teológica, ou Livro de C'Oração. E isto, num momento em que afirma que «chega o fim» dos seus dias. Espera o momento da terrível partida e fá-lo escrevendo e buscando a palavra certa como quem busca Deus ainda aqui, pois é sempre a Ele que se dirige: «Estou ainda aqui». As suas palavras são o relato de uma viagem entre a busca e a não-busca («Era um não procurar; talvez um não achar»), sem como, sem porquê, como a rosa: «mesmo que eu não percebesse a parte que me tocava no todo da Criação».
E ao contrário de Caeiro, «o vento é mais que o vento» e os «sentidos estão a mais» porque não entendem esse «Absoluto».
Sendo uma autora de cultura indubitavelmente cristã, é tão forte a sua ligação à terra e aos objectos simples que são seu cenário (terraço, janela, céu, árvores, plantas, flores) que quase paganiza ou panteiza a Natureza: «Deus toca-me: manda o vento, o som das folhas, o perfume das flores», não estando fora da sua poética as preocupações do quotidiano, como M. o seu filho difícil (torcido, limitado, inferior), que com a poesia oração consegue ver no apogeu: «ele tomará parte na Glória de Deus. Será pleno, feliz, como todos os que O contemplam finalmente face a face.». É este filho o Mestre que a coloca perante a humanidade que por vezes assume formas de bestialidade e a confronta com o paradoxo materno de amar porque é preciso que seja assim. O paradoxo que a confronta com a sua própria e imperfeita humanidade, que não esconde, ainda que a perturbe. Uma das mais corajosas páginas que já me foi dado ler, porque ninguém gosta, e ainda menos um escritor, cujo ofício é estético, de mostrar as partes da alma que reflectem o feio. Se a escritora converge com a mãe, duplamente difícil se torna, porque é duplamente anti-natura o que revela. Mas é isso que lhe permite a indispensável alquimia: «Terei de o colocar dentro e não de fora, no círculo do amor.»
Concluo a leitura com o sentimento de que esta mulher que escreve é minha irmã de alma, ainda que não nos tivéssemos encontrado aqui. Existe contudo um encontro ali, agora, num local que não sei situar e muito menos nomear, mas onde ascendo pelas suas palavras.
Quase no final do livro, uma analogia entre o incenso e o ideal que sonha para a humanidade «deveríamos ser como ele, desaparecendo, consumindo-nos somente para o alto», e «Nada rígido, nada ordenado, contudo mantendo inalterável o rumo!», coloca-nos perante uma personagem mistério: «Há pessoas que seguem deste modo - no entanto só uma conheço», contudo, arrisco, não muito difícil de adivinhar: «Suas curvas são irreverência, fantasia, liberdade completa, e sempre espalhando amor. E subindo, subindo, sem se desviar da meta!». Seu Amigo Agostinho! Ouso!
Com quem compartilha, inesperadamente, certos traços de linguagem, como a sintaxe do português de Brasil, que nele se compreende, mas em si é mais da ordem da simpatia: «nos acompanha? Nos assiste em amor?». Não é hipótese desajustada, pois longa e intensa foi a correspondência com aquele capaz de fazer perguntas iguais às das crianças, como ela própria, Maria Cecília: «será que o Paraíso tem flores amarelas e besouros escuros?».
Da pergunta pueril no seu sentido mais belo, à alta e sábia compreensão da dor na sua superior razão de ser. Dor partilhada com outro desconhecido irmão que se encontra mergulhado em silencioso sofrimento: «há o desejo impossível que ele soubesse que não estivera sozinho, que profundamente estive - estou - com ele, irmã que desconhece». Palavras de que me apetece apropriar e endereçar a Maria Cecília Correia, onde quer que ela esteja.
A autora da mais bela definição de morte que já vi:
«o que mais desejava era entrar em Deus como entro na água verde de Galapos: liberta, calma, feliz, entregando-me totalmente sem que nada em mim se retraia, num abraço pleno a quem me abraça também.
A fusão consentida, procurada, até!»
Um breve apontamento que não posso deixar de acrescentar sobre as "mãos"desenhadas por António Castilho, que ilustra o livro. Estas mãos como que constroem uma narrativa paralela que se entrelaça com as mãos com que a mãe teceu o texto. A mãe ou a escritora?
Estas mãos, cujo tom é dado na capa com um desenho reproduzindo as mãos de "A Criação de Adão", de Michelângelo são muito mais do que um código, são uma linguagem de mistério a que apenas alguns podem ter acesso.
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