2019-01-16



Risoleta C Pinto Pedro


O TÉDIO OCIDENTAL



Fernando Pessoa/Álvaro de Campos escreve, em 1914, a bordo de um navio no Canal do Suez, quando tinha 26 anos, "Opiário", um poema decadentista, nostálgico até à agonia, repleto de sentimentos mórbidos e cansaço daquilo que a modernidade lhe oferece, reflectindo um presente sem alegria, um futuro sem sonhos, o descrédito na existência de outros orientes, isto é, de outras direcções, o desgosto pela existência. O vocabulário é vulgar e o tom é cínico. Oferece-o a Mário de Sá-Carneiro, que há-de vir a suicidar-se. Não quero com esta afirmação afirmar que uma coisa está relacionada com a outra ou que Fernando Pessoa é responsável pela vida ou pela morte do amigo, pois cada um é responsável por si, mas pode não ter ajudado muito. Ou, pelo contrário, se lido de uma certa maneira, com olhar profundo, poderia ter ajudado ao diagnóstico da doença da modernidade.

Assusta-me ver hoje crianças e adolescentes rodeados de tudo ou quase tudo o que pedem e imediatamente desinteressados do que recebem. "Ouçamos" Campos:

"Enoja-me o Oriente. É uma esteira/ Que a gente enrola e deixa de ser bela."

Criámos crianças desinteressadas de todas as coisas realmente vivas, como a Natureza, que nunca pode deixar de ser bela. Muitos dos nossos adolescentes e pré-adolescentes até podem ter desejos, caprichos passageiros, mas não aquela vontade profunda do fundo da sua alma que os faz revolver mundos para obterem o que desejam, seja através do estudo, seja através de trabalho, porque, no fundo, estão sempre à espera que algo ou alguém lhes traga a solução, o objecto do desejo:

"Mas é impossível que esta vida dure. Se nesta viagem nem houve procelas!"

Meninos poupados a todo o esforço, a todo o sentido de responsabilidade, dever e compromisso, retirando-lhes assim também o prazer da conquista e de uma boa auto-imagem. E depois depressa se cansam. Para voltarem a desejar sem realmente querer:

"A vida a bordo é uma coisa triste,/ Embora a gente se divirta às vezes."

É-lhes proporcionado divertimento para esconder a tristeza que não se cura com diversões:

"Ora! Eu cansava-me do mesmo modo./ Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali/ Para sonhos que dessem cabo de mim/ E pregassem comigo nalgum lodo."

Os pais vêem-se assim prisioneiros de uma malha sem saída, a não ser que tenham a coragem de assumir aquilo que defendem os grandes pediatras e outros excelentes educadores e pedopsiquiatras: O equilíbrio entre o amor e a disciplina.

O sábio Pessoa diagnostica as raízes desta doença colectiva de modo sintético e ímpar:

"E os próprios gozos gânglios do meu mal."

Os pais receiam desagradar aos filhos, substituem o amor (que também inclui rigor), pelo medo. O cuidador é aquele que não receia dar o remédio que amarga com receio de que aquele que tem de o tomar deixe de gostar dele. Para o verdadeiro cuidador, o essencial não é ser amado, é amar, é o foco na cura daquele que está à sua responsabilidade e não o medo de desagradar. Se a criança, por não gostar do rigor que amarga, se revolta contra o pai ou contra a mãe, é apenas temporário. Mais tarde, o que vai ficar, vai ser a congruência e não o comportamento errático, o amor/coragem e não o medo, a consistência e não o discurso. As crianças são muito inteligentes e por mais maquilhagem que os adultos coloquem sobre as suas falas ou acções, não se deixam enganar. Até podem fazer pactos temporários, porque aprenderam a sobreviver, mas no fundo elas sabem onde se esconde a verdade.

A estas crianças ou adolescentes tudo lhes é poupado. E também a capacidade para sentir. Tudo. Até a dor. Com que também se cresce.

Os que verdadeiramente amam as crianças estão a ficar em pânico com a quantidade de drogas com que elas estão a ser anuladas no seu Ser. Para esconder o que não pode ser escondido. Porque tudo o que pode ser sentido pode ser curado. O que se oculta toma cada vez maior dimensão:

"Por isso eu tomo ópio. É um remédio./ Sou um convalescente do Momento./ Moro no rés-do-chão do pensamento"

Este é um plano das forças do mal, visíveis ou invisíveis, para anular o que de melhor existe na humanidade: o seu futuro.

"E marchar/ Até que a gente saia pla coleira!"

Com as drogas químicas com que se adormece a inquietação que faz crescer, estão a ser destruídas e envenenadas as crianças nos seus corpos, nas suas almas, estão a ser impedidas de passar do "rés-do-chão do pensamento". Com a colaboração daqueles que mais deveriam defendê-las: os profissionais de saúde, a escola e os pais.

Pais e mães acusam-se e culpabilizam-se mutuamente pelos comportamentos dos filhos e fazem exactamente o contrário do que deveria ser feito: unirem-se para ajudarem a sua criança. Mesmo separados, devem respeitar-se enquanto pai e enquanto mãe do seu filho; mesmo incompatibilizados não devem, nunca por nunca, banir, excluir, diabolizar o outro, pois sem o outro esse filho não existiria. Devem mostrar ao filho que foi o amor que o gerou e que esse amor era real e embora se tenha tornado difícil ou impossível de viver no presente, isso se deveu a circunstâncias e não a culpa. É tremendo e demolidor para uma criança ter de matar um pai ou uma mãe para agradar ao outro. Nenhum pai ou mãe tem o direito de se sentar sobre a dignidade do outro. Isso paga-se muito caro. E todos virão a ser vítimas disso. É como convidar a criança a matar uma parte de si mesma. Isto é demolidor. A criança nunca mais vai ser inteira, nunca mais vai ser feliz enquanto sentir a condenação de um pelo outro. É algo insuportável. Se um progenitor condena o outro, é como se estivesse a condenar metade do seu filho. Não há droga que cure isto. Para a criança, ambos são importantes e fundamentais, não pode prescindir de nenhum, mesmo em ausência física, ainda que afirme o contrário. Apenas o pai e a mãe podem reparar isto unindo em si o que separaram. Mesmo que um pai tenha morrido ou esteja longe e não possa reparar essa ausência, o que fica pode sempre fazê-lo trazendo-o para dentro do coração do filho. Se houver algum regozijo manifesto ou mesmo oculto, está tão ausente quanto o outro. E está a matar pelo menos metade do filho. Seguir com a sua vida é um direito e um dever de cada um, mas sempre cultivando a presença e a dignidade do outro. Se não conseguir fazê-lo por razões de ética, ao menos pela saúde do filho. Se isso lhe fizer algum sentido. O que não é certo, porque muitas vezes encontramos comportamentos narcísicos mas com discursos belos e sedutores, em progenitores tão autocentrados, que tudo o que não seja o seu passageiro interesse lhes é indiferente. Numa relação ninguém erra sozinho. Não adianta querer ficar com o papel de santo. O adulto que encontra prazer na zanga do filho com um dos pais é uma criança ainda muito ferida, ela também cindida, a perpetuar no filho a sua dor. Por muito que o discurso seja outro. Os discursos passam, as emoções ficam.

O que a criança quer é ter pacificados dentro dela pai e mãe, masculino e feminino, ternura e rigor. É daí que vem o equilíbrio. Tudo o que não seja isto gera uma enorme confusão dentro de si, como se uma parte fosse boa e a outra má:

"E afinal o que quero é fé, é calma,/ E não ter estas sensações confusas."

Com o Opiário, Pessoa mostra como este povo, que passou todos os perigos e se transcendeu pelo enfrentamento dos inimigos internos e externos, se encontra agora como desempregado, sem nada para fazer.

"Pertenço a um género de portugueses Que depois de estar a Índia descoberta/ Ficaram sem trabalho."

O que os portugueses precisam de descobrir é a Índia Simbólica dentro deles, fazer essa viagem pode conduzi-los à Ilha dos Amores de que fala Camões, essa onde o masculino e o feminino estão em equilíbrio. Deusas e heróis. Até lá algum caminho tem de ser feito e não adianta evitar o Adamastor, esse senhor dos mares, esse obstáculo e essa grande bússola orientadora.

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