2018-08-22



Risoleta C Pinto Pedro


PERFUME EM LISBOA
(A minha África)


A minha África tem forma de grande transatlântico e perfume de banana e ananás. Eu tinha nove anos quando a conheci. Vivia em Santarém, mas fui a Lisboa com os meus pais ao encontro dela. Recebemo-la no porto de Lisboa, como ele era então. Monumental, apinhado de gente. Uma experiência inesquecível. África vinha aí, embora ainda não estivesse à vista, nem o perfume se anunciasse. Era mais uma questão de fé. A mãe e o pai tinham dito. Nessa idade não se duvidava da palavra dos pais. Ali nos arrumámos numa varanda a transbordar de gente, mas uma criança tem o direito de passar à frente para ver melhor; Deus existe. Pelo menos na Europa, e eu não sabia que em África muitas crianças tinham mais dificuldade em imaginar o rosto de Deus. Os rostos dos que esperavam eram ansiosos, mas felizes na expectativa de verem África. Pensava eu. Eu não via a minha expressão, mas sentia-me assim, numa imensa excitação. Nunca tinha assistido à deslocação de um continente. Já conhecia um bocadinho de África por fotografias que a minha tia enviava, com filas de meninas e meninos negros, os alunos dela, e uma menina muito loura no meio deles, que era a minha prima. Desde o tempo dessas fotografias que a miscigenação racial se me afigurou como a coisa mais natural do mundo. Esperava ver sair do navio muitos meninas e meninos negros alinhadinhos, como os da fotografia, com uma ou outra menina loura no meio deles, mas quando o navio chegou, eram quase só brancos adultos que de lá saíam e da menina loura e da minha tia e do meu tio, nada. Foi preciso esperar muito, foram quase dos últimos a sair, pelo que, depreendi, estavam já com saudades de África. Mas vinham muito sorridentes e cheios de histórias de África e da viagem.

Partimos para Santarém com aquele bocadinho de África que eles eram, embora sem os meninos negros, que pena! E aí foi um abrir de caixas e malas e sacos com a difusão de um perfume estranho de banana misturada com ananás. A partir desse dia banana e ananás deixaram de ter evocação singular na minha memória. Até hoje, nunca mais comi banana sem o perfume de ananás se associar à experiência, e vice-versa.

Mas traziam mais coisas, leques e loiças e outros objectos com motivos exóticos, nada parecidos com as peças que eu já tinha visto algures, em pau-preto, como arte africana. Estes eram de fabrico chinês, explicaram-me. Fiquei um pouco confusa, mas deduzi que Moçambique ficava mesmo ao pé da China e que era fácil ir lá buscar coisas. Não era muito boa a Geografia. Só mais tarde vim a compreender que era um bocadinho da China que estava dentro de Moçambique.

Passei o tempo em que eles cá estiveram imersa num estado de exaltação perfumada a ananás e banana com imagens chinesas por todo o lado e a frustração da falta dos meninos negros.

Talvez por isso, até hoje, sempre que me cruzo com negros em qualquer lugar, privado ou público, sinto uma espécie de nostalgia de um não sei que Paraíso Perdido, uma alegria que não sei descrever nem explicar, como se estas pessoas fossem aqueles meninos e meninas das fotografias, agora crescidos, e vindo, finalmente, ao meu encontro, com o dom da inocência a recuperar.

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