2017-07-25



Risoleta C Pinto Pedro


PADRÕES E ADN
(Sobre a pintura de Luísa Soeiro)




Em 2004 o tempo já corria. Assim o testemunha a pintura de Luísa Soeiro dessa data. E eu acredito sempre nos criadores. Nos de verdade. Há uns que fingem sê-lo ou não acreditam que o possam ser: imitam outros ou imitam-se a si mesmos. Nesses, não acredito. Ou dou-lhes o crédito que se dá a uma fotocópia, vá lá...

É claro que ninguém cria a partir do nada, no mínimo imita-se o primeiro que criou, mas ainda assim há uma dose de originalidade, que pode ou não ser extravagante (no sentido etimológico), mas que apresenta aquilo que é invisível aos olhos dos leigos, a marca do ADN. É isso que distingue um de outro escritor, um de outro artista plástico.

A pintura de Luísa Soeiro, feita com as formas do mundo e o mundo das cores, tem a sua marca. Uma marca que não sei designar, mas que consigo descrever. O tempo corre circularmente em círculo fechado ou espiralado, pode mesmo criar as suas próprias pás de vento para melhor mobilizar o ar. É um tempo perfeito. Nele se esconde, por exemplo, ou pelo menos eu vejo-a lá, a cruz templária. Nestes círculos diversamente coloridos, este sinal do templo é mais visível que o de Cristo. Uma cruz em movimento abismal. Onde nos leva esta rotação? Aos lugares superiores ou aos infernus? Ou a um terceiro lugar onde ambos se encontram? Que caminhos nos revelam? Como numa outra série assim chamada: “Caminhos entre a minha casa e a tua”: caminhos labirínticos com marcas, talvez enganosas, de oásis, com estradas que não conduzem a lugar nenhum e outras que conduzem a todos os lugares. Olhados com atenção, estes caminhos transformam-se naquele que caminha. São o caminho, o caminheiro e o caminhar. Observados como mapas de mistério, parecem as profundezas do sangue, multiplicadas a um microscópio de última geração. Isso explica o sentimento anterior. Somos passeados, percorridos ou caminhados por nós mesmos em nossa forma líquida.

Para além dos caminhos, os lugares: jardins de encantos em mais do que uma versão: passeio, toca, vários tipos de caos (uma forma de os organizar), um inferno bom (“quente e saboroso”) e declaração de intenções: “Não te toco mais”.

A sensibilidade estética dedicada aos caminhos não é totalmente distinta da dos lugares: cor interrompida por traços, tudo muito humano, ferramentas do mundo arrumadas por simpatia mútua em padrões com que a pintora marca o não criado, como outros viajantes entre um e outro continente assinalaram com seus marcos, suas cruzes, padrões em pedra como esses são em tela, semelhante à que conduziu aqueles pelos caminhos dos ventos.

Estamos perante uma curiosa e estudiosa dos ritmos criados pela pedrada no charco que é o existir.

É um trabalho sério com sorrisos dentro, numa quase auto-ironia exemplar e profunda. A pictórica metáfora sorridente é o ponto, o traço, a linha, a forma, a cor e (pasme-se!) o movimento.

Acrescentando à tela, o gesso, cria... poemas ... chineses! Talvez não haja nada mais intraduzível do que a poesia chinesa... e a pintura. Luísa Soeiro reune ambas numa proeza épico-poética inédita. Seria um desafiante exercício poético a tentativa de transpor, para palavras em português, o que não só é chinês, como pictórico. Não imagino outra língua em que valesse a pena tentá-lo. A pintora mantém aqui o seu sorriso mais sério com que desarma qualquer análise.

Esta viagem rápida que faço pela pintura que dela conheço apresenta um risco, neste caso corre, literalmente, o risco de omitir a exaustão, a minúcia, a quase análise que revela este surpreendente trabalho, que depois de nos mergulhar na maior abstracção nos apresenta... rosas! Como se o trabalho de preparação não fosse dela... mas como se o tivesse feito por nós, para nós, para nos preparar para as rosas. Tem razão. Depois do ponto, linha, traço, a rosa aflora e desabrocha, triunfante!, rodeada de bolas coloridas como se o exercício não tivesse outra intenção para além do triunfo da rosa.

E é no final da mostra que ainda mais funda se faz a revelação, com a exibição de caixas de Pétri, que são, como se sabe, usadas em microbiologia para o desenvolvimento de microorganismos. Os mesmos que já víramos em forma de ponto, traço, linha, forma... retratos minuciosos e secretos finalmente revelados, do sangue e das rosas (essa bela metáfora da cruz) de que somos feitos.

Se visitarem a sua página (luisasoeiro.com), o indício está no princípio, mas a revelação do segredo vem no fim. Não há como os (alguns) artistas para nos porem frente a um espelho daqueles onde só se vê a alma.

A pintura de Luísa Soeiro é um espelho assim.

Risoleta C. Pinto Pedro, 23 de Julho, 2018

(Dedico este texto a uma corajosa e notável senhora (LAN) que nasceu, há muitos anos, neste dia e já partiu. E a Pedro Morais, que quis que eu escrevesse sobre esta pintura e tinha razão. Lamento que já não esteja aqui, lamento não o ter feito no seu tempo de cá, mas talvez possa, ainda assim, ler o que escrevi.)

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