Risoleta C Pinto Pedro
A SAUDADE EM PASCOAES, uma TEORIA NOVA
Sobre Teoria Nova da Saudade, de Pedro Martins
Ed. Zéfiro
Não é fácil escrever sobre este livro, porque cada parágrafo é essencial, avançando em progressão e em crescendo, pelo que, se não fizermos um tremendo esforço de síntese que se apresenta difícil pois variados são os ramos, nos arriscamos a dele fazer uma paráfrase.
Não é uma nova teoria, mas, como o título indica, uma teoria nova, o que é profundamente diferente. Uma nova teoria situar-se-ia no campo das modernices que estão constantemente a aparecer e a desaparecer. Uma teoria nova, como a Vida Nova de Dante, para ser verdadeira, tem de estar profundamente arreigada no que de mais antigo existe na tradição. Não quero com isto dizer que se trate de uma teoria conservadora, porque ela é nova. Trata-se de uma teoria progressista firmada na tradição. Tradicional e progressista. Que são as duas faces da mesma coisa, a prova dos nove da verdade. A prova nova da saudade. É uma teoria a que se chega através do método da desocultação. Ou desvendamento. E revelação.
Teoria Nova da Saudade é um livro onde, mais uma vez, este autor se institui como desocultador, leitor de sinais subtis.
Segundo Miguel Real, autor do excelente prefácio, Pedro Martins, neste livro sobre Maránus de Teixeira de Pascoaes, ultrapassa as anteriores visões e «irrompe» e «ostenta» uma «visão esotérica da saudade». Assim é, e não se fica por aqui, pois na Saudade vai desvendar o subconsciente judaico, o paracletismo e o simbolismo maçónico. Parte de Pascoaes, mas convida, para este percurso, Álvaro Ribeiro, António Telmo, António Cândido Franco e, mais episodicamente, Pedro Sinde.
Começa este livro com a narrativa, no Prólogo, de um milagre… real. Um episódio milagroso em que Eleonor se materializa em anjo desenhador ou menina e visita o escritor com o seu desenho nas cores da Saudade, de Maránus.
Este foi o milagre. Mas o milagre contém sempre um problema, na revelação. Por isso, Pedro Martins começa por problematizar o que vai constituir o foco do seu raciocínio, que tentarei aqui desdobrar:
- Já no título, Maránus cifra, e ocultando revela, o marranismo.
- Maránus é a Saudade, logo, a alma portuguesa no seu âmago.
- Como é que, então, a condição marrana na sua natureza de síntese, enforma a Saudade?
É este o triplo e uno problema de que se ocupa. O desafio será encontrar o marrano oculto, que é, afinal, o que designa como «a composição harmónica do paganismo e do cristianismo».
O próprio Pascoaes possui disto consciência, segundo citação do seu hermeneuta, a partir de A Arte de Ser Português: «Esses antigos povos [povoadores da península] pertenciam a dois ramos étnicos distintos, diferenciados por estigmas de natureza física e moral. Um dos ramos é o ária (gregos, romanos, celtas, godos, normandos, etc.); e o outro é o semita (fenícios, cartagineses, judeus e árabes)».
Quando Pedro Martins refere o judaísmo, e muitíssimas vezes irá fazê-lo, fá-lo-á, aliás, constantemente, não o considera hostil ao cristianismo, como não lhe considera contrário o paganismo. É de sínteses, a partir das oposições, que se trata.
Procura, nos sinais de paganismo, os indícios de judaísmo, nomeadamente o apego à terra e à vida, que caracteriza o judeu. Num encontro poético-simbólico como é o de Maránus, onde Jesus e Apolo habitam o mesmo mundo, síntese privilegiada de obras de iniciados, como é o caso d’Os Lusíadas. E de Maránus:
«uma nova concepção, que nada tem de ascética, do cristianismo, em manifesta contradita com o que, ao longo de todo o poema, podemos surpreender nas palavras e nos actos de Eleonor.»
Isto não é estranho à síntese superior de que fala António Telmo no âmbito da Filosofia Portuguesa de que Pascoaes é um dos poetas, e que aqui encontramos nas exactas palavras do autor da Teoria Nova da Saudade:
«Do putativo lado pagão, encontramos expressa a ideia, afinal judaica, de santificação do corpo, pois é neste sentido que entendo o desejo, de Apolo, de querer comungar o ser espiritual de Cristo». E acrescenta Pedro Martins transcrição de António Cândido a propósito do canto IX de Maránus «em que Cristo tem falta de Apolo e Apolo de Cristo, ilustra, na nossa tradição poética, que é a de Camões, a falta que cada parte sente da adversa», ideia que Pedro Martins acrescenta assim:
«Esse poder de recíproca atracção que aproxima e reúne as duas metades opostas chama-se Saudade, sentimento que Pacoaes, durante esse canto exorbitante do poema genial, deixa inominado na latência fértil da sua irradiação. Sentimento que adstringe o corpo ao espírito no intermundo anímico-sensitivo do microcosmo humano, a Saudade espiritualiza o corpo e corporiza o espírito.
Destarte concertada pelos deuses, a Saudade como nova religião, ou, talvez melhor dizendo, como sentimento gerador de uma nova religiosidade adentro do cristianismo, que assim nos surge como um cristianismo novo».
E traz consigo Álvaro Ribeiro, contributo precioso para superar a aparente contradição, pois se é próprio da alegoria significar outra coisa, e se a Saudade, em Pascoaes, é a Tradição, sendo também alegoria, qualquer fissura desaparece. Estamos, então, segundo Pedro Martins, perante uma «alegorização da Tradição» vendo o poeta como profeta, ou aquele que lê na eternidade. E assim prosseguimos a nossa viagem pelo pensamento que não é já de Pedro Martins, mas do Pensamento Português, pela folhagem desta árvore simbólica onde a díade paganismo-cristianismo que encontramos em Pascoaes se amplia e aprofunda e dilui criando algo superior.
À tríade judaísmo, cristianismo e islamismo lembrada por Álvaro Ribeiro, à interpretação da tradição filosófica à luz da Kaballah, por António Telmo, distingue a posição do primeiro sobre a realização da síntese das três religiões do Livro através da Kabbalah, da posição de Telmo, que enfatiza uma tradição esotérica ou uma gnose hebraico-portuguesa, que nas palavras de Pedro Martins, «firma matricialmente na raiz cristã da nacionalidade», sendo que, não havendo um fosso entre ambas as visões, têm algo de subtil, mas não essencialmente diferente.
Nenhum deles nega o subconsciente hebraico e a consciência cristã da nação.
Neste livro de Pedro Martins parte-se do Maránus para o entendimento da Saudade num contexto hebraico «que como veio oculto perpassa na cultura portuguesa». O paganismo é visto, nesta obra, como uma ocultação do judaísmo por conta do terror antigo da Inquisição. Poderemos aceitar como tese, que: «Marános pode estar por marrano, mediante a prévia demonstração que o subconsciente hebraico emerge e define o termo antitético do cristianismo na estrutura contrapolar da religião saudosista».
A tese não o envolve num foco particular, mas amplia-lhe o olhar, aberto e multifacetado, que encontra a verdade nas diferentes leituras, a dar razão ao que afirma Miguel Real:
«Quando pressupúnhamos já tudo saber sobre o sentimento-conceito de saudade, eis que o livro de Pedro Martins rompe as certezas consolidadas, lança dúvidas sobre a correcção de algumas teses, não as criticando, e abre portas ao conhecimento através de uma nova interpretação exploradora das anteriores intuições conceptuais de António Telmo. Não sabemos o que mais admirar, se a excelência da nova proposta se a elegância polida de não criticar as restantes.»
Pelo contrário, exalta o que é de exaltar e os lugares onde aprendeu o que agora suporta o próprio caminho, como quando se refere ao estudo perspicaz e pioneiro de António Cândido Franco:
«E é por isso que, a meu ver, Eleonor na Serra de Pascoaes, sobre ser um livro precursor na hermenêutica pascoalina, é um marco histórico, pois que lhe força as portas do subconsciente hebraico.»
Neste tom que Miguel Real tão bem define, vai serenamente, capítulo a capítulo, com didáctica solidez, como aliás em livros anteriores, demonstrando o quanto de judaico existe nesta obra, como é o caso do segundo capítulo, onde se dedica a associar o pranto do herói, no segundo canto de Maránus, ao pranto judaico tal como é conhecido: «a individualidade solitária; o jejum; a desolação» e «o pranto propriamente dito». Bem como a presença de outros aspectos que virão a revelar-se sugestivos, como o «cismar», a convergência com a Kabbalah na capacidade criadora do homem, mais próxima de uma teurgia, a vertente teosófico-teúrgica, ou «marca teúrgica de Pascoaes», mas muito em especial o carácter iniciático do poema, como muitíssimo bem explana no segundo parágrafo da página 41, mas onde não podemos, por uma questão de espaço e bom-senso, deter-nos. Apenas assinalar que o aspecto teúrgico aparece reforçado pelo facto de os cabalistas hebreus prestarem culto a Elohim, a inteligência da criação, ideia reiterada em Maránus, convergência com a Kabbalah na capacidade do homem para criar.
E novamente, recorrentemente, como vai acontecendo, retomando os que antes de si se debruçaram sobre este texto, vai, de forma elegante, como assinala Miguel Real, tentar compensar o que falta na interpretação de Sinde e a sua vertente gnósica, ou «verticalizante», buscando ele outro plano: o do destino messiânico de Portugal.
Assim como não nega a presença do cristianismo, mas busca o que ele oculta. Com a ajuda do iluminante foco de Benzimra. Trabalho quase policial, o questionamento das marcas cripto-judaicas. Como é o caso da visão do corpo, olhado e considerado como santo («algo de eminentemente santificável»), aspecto relacionado com «o apego do homem hebraico a esta vida» ou «esse sentimento tão puramente judaico da joie-de-vivre». O marrano em todo o seu esplendor em Maránus, para quem quiser ver, embora aqui apareça, também, na sua versão tão marrana do homem dividido entre duas culturas, duas religiões. Tudo isso o poema contém, como tão bem demonstra.
E isto não é alheio à Teoria Nova da Saudade, que define toda a obra de Pascoaes. Concretamente, nesse palco que é Maránus, palco alegórico representativo da humanidade, a cujo ouvido, segundo o paracletismo angelógico de Pascoaes, sopra o Espírito Santo através dos anjos.
Sendo a Saudade uma alegoria da alma nacional, casada com Maránus, é a parte seis que vai debruçar-se sobre o diálogo com D. Quixote, no capítulo XI do poema.
Aqui prossegue o testemunho desta leitora sobre um livro de Pedro Martins onde desoculta o marrano em Maránus. Apoiando-se a hermenêutica deste autor, sempre muito original, como já vimos, nos textos de literatura filosófica nacional e nas leituras de seus pares, neste caso, concreta e particularmente de António Cândido Franco e António Telmo. Para se aproximar deles e sempre que for o caso, deles se distanciar, percorrendo o seu próprio caminho, isto é, ampliando e aprofundando a sua visão. Neste livro em particular, acompanha o leitor numa apaixonante viagem pelo poema de Pascoaes, mostrando a presença do cristianismo juntamente com, onde parecia haver paganismo, uma visão marrana da vida, isto é, um hino à vida. Por isso me detenho no capítulo sexto, onde vai analisar o já referido diálogo poético, mostrando e desocultando todos os sinais de exaltação da vida dados por Maránus, em contraponto com D. Quixote. Apoia-se, nesta reflexão com que vai fortalecer a sua tese, numa excelente intuição de António Telmo, seu frequente inspirador, a propósito de D. Quixote e a mística e poética amorosa portuguesa, na diferente relação com a vida, o corpo, a Natureza e o amor. Assim, a existência de místicos como S. João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, na sua relação de castidade e abstinência não tem paralelo em Portugal, e mesmo de um D. Quixote, parece permitir-nos concluir a forte influência islamita na cultura espanhola, ou uma espécie de «síntese islâmico-cristã» onde a fuga ao mundo e ao corpo se concentram, em contraponto com o que se passa no tão português Maránus: «Adora a Divindade que se beija,/E é só carnal e quente formosura». Marranismo puro, naquilo que tem de mais próximo do judaísmo, o respeito pela vida, Elohim, lado criador de Deus no seu melhor. Aquilo que Pedro Martins designa como «a concepção judaica do amor» em Pascoaes: «Sê homem e animal, o que é também/ Uma grande alegria da Natura!». Numa espécie de síntese onde cristianismo e judaísmo se entrelaçam para criar algo superior. Como Telmo, não nega a presença de traços de islamismo na nossa cultura e no próprio Maránus, o que, aliás, não esconde e pelo contrário demonstra, numa atitude científica e de transparência intelectual, que outra de si não seria de esperar, mas parecem tão insignificantes esses traços, o gnosticismo fica tão desvanecido, embora admita o «gnosticismo platonizante do vate de Gatão», que tendo o leitor feito com o autor todo o percurso de iluminação dos vários cantos e ângulos claros e obscuros do poema, sobretudo releva para nós, como última leitura, o abraço judaico-cristão.
André Benzimra, eminente estudioso da cultura judaica, acrescenta,no texto de Pedro Martins, relativamente aos judeus: «Uma vida só da alma, separada do seu corpo, parece-lhes algo difícil de conceber».
Sendo todo o livro de um imenso didactismo e gradual progressão, a complexidade, para o leitor despreparado, não deixa de ser significativa, pelo que determinados momentos do livro, como o já referido sexto capítulo, podem revelar-se, neste nível, de iluminadora clareza.
Este não é o único livro do autor onde a presença da cultura judaica na nossa literatura-filosofia-vida é demonstrada, mas é, sem dúvida, um livro central para quem anseia por conhecer melhor Teixeira de Pascoaes, a poesia e a filosofia portuguesa, e a encriptação da cultura judaico-marrana nas nossas letras, na nossa história e nas nossas vidas.
Prosseguindo com ele no processo de revelação do oculto, o conceito presente de terra consagrada coloca esta ideia ao nível da hebraica santificação do corpo, como vimos anteriormente já sugerida por António Cândido Franco, que a situa em paralelo com o papel de Portugal enquanto terra consagrada, enquanto «lugar eleito desta nova idade, que abriria consigo um novo ciclo da história da humanidade, um ciclo que parece repor a perdida idade do ouro», nas palavras do mesmo Anónio Cândido. Concordando com esta leitura, Pedro Martins vai, no entanto, mais fundo na leitura paraclética do Maránus procurando demonstrar que o Poema apresenta uma reelaboração «mítico-poética, da doutrinação joaquimita». Mostra, em Maránus, a prevalência das idades do Filho e do Espírito Santo, a verticalidade na relação com o tempo histórico, «por mor de um compromisso a honrar no palco da acção patriótica» numa era de fraternidade universal.
Sobre o que adverte para a vinda de algo de novo, começando por sintetizar, recorrendo a António Telmo, que «a Saudade, enquanto sentimento, é o culto do Espírito Santo» ou o «Espírito Santo revelado, visto que este corresponde, na tradição cristã, à Shekinah da tradição hebraica, como presença da divindade neste nosso mundo, seu aspecto feminino».
Saudade, Espírito Santo, Shekinah e Virgem Maria são apresentados como entidades praticamente coincidentes nesta construção simbólico-iniciática que a partir da obra de Pascoaes vai tomando forma pelas palavras do autor, desde o desvendamento da Saudade, lembrando a Lua Nova iniciática e profética, até Maránus-Adão, tendo ambos em comum a representação alegórica da humanidade. Vai tomando forma, ainda sob o manto do encriptamento... mas não é totalmente nítida, a luz simbólica e paraclética trazida pela lua.
E do interior de Maránus continuam a soltar-se deuses, anjos, humanos, flores; formam puzzle complexo onde aflora a expressão «Religião da Terra» e «Religião do Céu». Nas palavras de Pedro Martins:
«em apelo a uma síntese de compromisso, o indeciso carácter conflitual da condição marrana que, oscilante entre Cristo e Moisés, se presume ser a de Pascoaes. Religião da Terra, o judaísmo professa a natureza puramente humana do Messias, ao passo que o cristianismo, enquanto religião do Céu, lhe atribui já uma componente divina, como bem enuncia André Benzimra.»
E a questão colocada por esta díade é aquela com que qualquer marrano se confronta:
É o mensageiro do Divino «a própria Divindade? Ou apenas como um seu enviado?». Considera Pedro Martins ser este o conflito dos marranos. Segundo o mesmo, não parece haver abertura, da parte de Pascoaes, para a aceitação da encarnação de um Deus abscôndito e absoluto. É, segundo o autor, a reinvenção, pela Saudade, do cristianismo no Maránus. Esta oscilação marrana em curso para o compromisso de uma síntese, encontra algum paralelo, e por isso lhe é dedicado um capítulo, à também aparente oposição entre a Renascença e a Seara Nova, Pascoaes ou Sérgio, Platão ou Aristóteles. Com a mediação de Cortesão e de um Telmo olhando a raio-x as profecias poéticas de Pascoaes e vendo nele um cristão-novo capaz de realizar a síntese das duas religiões. Mas antes, é necessário diagnosticar onde está o obstáculo a esta síntese, que encontra numa certa cabala de fuga ao mundo e ainda de um cristianismo islamizado, ascético, nocturno, equivocamente gnóstico com que deparamos também no percurso solitário trilhado por Maránus. Mostra ainda que, se a Kabbalah está encoberta na obra de Pascoaes, não menos o está a Maçonaria, contudo nem uma nem outra são de menor importância. A este propósito, Pedro Martins evoca Telmo e a sua vontade de conciliação da Renascença e da Seara Nova, do Céu com a Terra, afinal o judeo-cristianismo pelos mistérios da iniciação maçónica, apesar dos perigos e malefícios da contra-iniciação para que alerta Telmo, em prosa e em verso.
Termina o livro com um tocante epílogo contando uma revisita do autor a Gatão, ao fim de alguns anos, o que permite um importantíssimo diálogo com D. Maria Améla, a guardiã do Templo de Pascoaes, a quem reitera que «é bem possível interpretar a teoria da Saudade à luz da doutrina maçónica». É, na página 178, um texto importantíssimo de síntese que recomendo com vivacidade, de um pensamento longa e pacientemente explicado ao longo de perto de duzentas páginas. A fórmula dialogal no discurso indirecto encontrada, para seguidamente voltar a dirigir-se ao leitor, faz parte da originalidade deste ensaísta que, para além do cânone, encontra as suas próprias formas.
O livro termina com um mais que justificado texto de António Cândido Franco discorrendo entre Maránus e Pedro Martins.
O livro que acabámos de fechar, partindo por vezes de conversas com outros autores, desenvolve-se sucessivamente em progessivas novas evidências, com que aprofunda, quase em árvore, o seu tema, sendo que é a Saudade o farol que ilumina e com que ilumina o discorrer. O «poder criador da imaginação saudosa», segundo palavras de António Cândido Franco, está no Maránus, como demonstra Pedro Martins em imagens onde a ideia de Deus surge «como resultado da criação espiritual do homem». Não negando o messianismo paraclético, amplia-o, vai mais longe, como já dito, pela mão da Saudade, «alma universal» ou Shekinah, com que a identifica, tecendo comparações com outras obras de Pascoaes, como Regresso ao Paraíso.
O rigor da ideia por vezes inapreensível, mas com pontas suficientes para um remate justo e perfeito mais à frente, é apoiado com citações de sustentação imbatível e uma serenidade que se mantém ao longo do livro, mostrando a segurança da convicção sustentada no saber.
É o caso das desencontradas opiniões acerca de conceitos como esoterismo e exoterismo, ocultismo e religião, a que mais do que uma vez o rigor de pensamento de António Telmo é chamado e vem oferecer clara compreensão, por exemplo, à ambiguidade em que caiu o próprio cristianismo ao recusar o esoterismo de origem. E é aqui que o veio poderoso que é a poesia de Pascoaes, que seguiram as quase duzentas páginas, se reencontra com o leitor através de uma outra polémica, a de Sérgio e Pascoaes e a recusa daquele em atribuir valor à Saudade poética de Gatão. A propósito disto se conduz um diálogo de autores através do mediador activo e hábil que é Pedro Martins.
Sobrepõe-se, contudo, a todas as polémicas, a Teoria Nova da Saudade, Pascoaes e Maránus interpretados «à luz da doutrina maçónica» e dos princípios da Kabbalah, sem ignorar o cristianismo numa certa vertente gnóstica, temperado de paganismo, um casamento entre o céu e a terra.
E contudo, ou por isso, admite o autor na sua honestidade intelectual e no seu rigor de investigador isento, que Pascoaes destina Maránus a uma «angélica deriva solipsista» ou «angelismo sacrificial». Como fomos dizendo, Maránus é um ser dividido entre a tendência gnóstica hostil à manifestação, e, em última análise, o Amor ou Oaristo, a mais profunda e elevada forma de diálogo entre o homem e a mulher. Na senda de Álvaro Ribeiro e de Telmo, demarca-se o autor do referido gnosticismo. Deste modo coloca a criação poética e filosófica ao nível da oração: uma arte poética ou razão poética que é, também, uma teurgia.
E estando o autor, e ainda mais o leitor, profundamente enredados nos fios entrecruzados onde em certo ponto se desprende a tradição maçónica comum a Telmo, Álvaro Ribeiro, Cortesão e Pascoaes, é o próprio Pedro Martins que, ironizando, afirma que não se afasta «um yod do fio condutor do ensaio». E nós acreditamos, pois foi o que vimos acontecer ao longo do discurso do livro, ainda quando tal não parecia.
No final, cria convergências entre pensamentos aparentemente diferentes, como é o caso de António Telmo, que imaginando uma nova Loja Maçónica, define a actividade dessa imaginária Loja em termos de Vida Poética, como Agostinho não teria dito melhor. Acrescentando Pedro Martins, aludindo à base cripto-maçónica do pensamento de Agostinho, cuja filiação, não sendo pública, também não é certo que não tenha existido:
«Doravante, a intervenção no mundo profano, como expressão de uma tendência co-essencial ao maçonismo, surge superiormente garantida por aquela sorte de autêntica elevação espiritual que só a filosofia concede, e a que a própria Ordem, hoje tão abalada pela contra-iniciação, terá por força de ser reconduzida.
A esta luz, será bem de crer que a filosofia agostiniana, nem sempre resguardada, em sua compreensão hodierna, daquela projecção egolátrica em que o devocionismo não raro se compraz, mereça agora a mercê de uma imersão lustral no varonil fermento maçónico.»
Talvez Agostinho sentisse também Saudade, essa sagrada emoção que nos une num território infinito, da Tradição, aquela alma eterna vinda do futuro para transformar o passado em algo de novo. Como esta Teoria Nova, cuja leitura, já com Saudade, recomendo.
Risoleta C. Pinto Pedro
20 de Março de 2018, 15. 45
Trinta minutos antes do Equinócio
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