2018-02-28



Risoleta C Pinto Pedro


Do «bué» ao Latim


- Iô! Doeu que se fartou!
- Mas ficou bué da fixe!
- Naice! Uma bela rosa!
- Iá!

Não sei se é assim que se escreve iô e iá, mas para além do iô e do iá e do fixe, e naice, há aqui sinais que me tranquilizam e me dizem que nem tudo está perdido: a admiração pela beleza da rosa e a consciência da dor. Dor, beleza e rosa, três ingredientes com que nos poderemos salvar. Apesar dos iô, dos iá e dos bué da fixe...

Quando pelos dezasseis anos comecei a estudar Latim e Grego, tive uma espécie de epifania. Foi como se as palavras tivessem renascido para mim. E pensava: será que as pessoas estão conscientes do som que proferem, de como é belo e requintado e profundo? E... poderoso e misterioso?

Até há relativamente pouco tempo (não sei se já se foi...) tinha um pesadelo recorrente em que eu não conseguia obter aprovação no exame de Latim. Tudo bem com o Grego, no sonho o meu problema era o Latim. Se fosse real, nunca teria conseguido completar a licenciatura, pois sem Latim nada feito. Felizmente que tal não aconteceu. Porque terminei a licenciatura e porque aprendi uns mínimos de Latim.

Hoje defendo que as crianças deviam aprender Latim no ensino obrigatório, o mais cedo possível. Porque o Latim, ao contrário do que se diz, não é uma Língua morta. Ela está viva no vocabulário científico, no vocabulário médico, no vocabulário jurídico, no vocabulário eclesiástico, no nosso léxico, na história da nossa literatura, nos documentos, nos monumentos...

Ao contrário de Saussure, não defendo que a Língua é uma forma e não uma substância. Pelo contrário, a forma e a substância em que se apresentam as línguas são a necessidade imperiosa da existência de, como afirma o nosso filósofo António Telmo, um Génio que é a Língua e que ao objectivar-se ou materializar-se, requer o acolhimento de uma taça. O Latim é um dos componentes da taça em que o Génio do Português se materializou. Outras línguas, cujos vestígios e mesmo presença se encontram na nossa, também o são. Assim como o é o território nacional. Daí a afirmação de Bernardo Soares: "Minha Pátria é a Língua Portuguesa". A Pátria é a Língua e são ambas anteriores ao território.

Estudar o Latim, reconhecê-lo como um dos tijolos da Língua (fenómeno posterior ao desenho do arquitecto, onde o projecto dispensava ainda a matéria) é como decompor para melhor conhecer. Ir ao encontro do todo, pelo conhecimento das partes.

Para além de um mais profundo conhecimento da Língua e da sua história visível, o estudo do Latim treina ferramentas conceptuais preciosas, como o rigor e a intuição. O rigor, pelo conhecimento da sua estrutura gramatical, a intuição, porque uma sintaxe com uma concepção radicalmente dierente da nossa requer competência que não tem apenas a ver com o estudo.

Reconhecer no Português a presença do Latim é penetrar no profundo das palavras, é entrar nos segredos de Hermes, é conhecermo-nos um pouco melhor a nós mesmos, é penetrar numa câmara de mistérios que não sabemos aonde poderá conduzir-nos, mas que vale a pena percorrer. Ao encontro da beleza da ... rosa, rosam, rosae, rosa, rosas, rosarum, rosis. «Bué da naice» é a rosa da Língua. Que tal experimentar uma bela tatuagem com a declinação latina da rosa? Senhor Ministério da Educação, que tal? Fixe?

http://aluzdascasas.blogspot.com/
http://diz-mecomonasceste.blogspot.com/
http://escritacuracriativa.blogspot.pt/
http://www.facebook.com/risoleta.pedro
http://risoletacpintopedro.wix.com/risoletacpintopedro



Ver crónicas anteriores



LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS