2017-09-27



Risoleta C Pinto Pedro


A indignidade da "frota"

Tenho um brilhante e jovem amigo, licenciado em economia e poeta (ou poeta - faz poesia com palavras, com traços e com a sua própria vida - e licenciado em economia), que trabalha algures em Alcântara. Como se dá o caso de necessitar de uma cadeira de rodas para se deslocar e não podendo conduzir, depende de uma carrinha que faz parte do Serviço Especial de Transporte da Carris para pessoas que não possuem condições físicas para usar os serviços regulares, ainda que adaptados, o que nem sequer é o caso de todas as carreiras. Para além de ter de sair cedíssimo de casa e regressar por vezes tardíssimo (dependendo de quantos veículos estão de facto operacionais para servir todos os utentes na área de Lisboa, porque quando só funciona UM, a deslocação acaba por ser uma espécie de excursão pela cidade e arredores).

Esta carrinha, que faz parte de uma frota de... (até sinto vergonha de o dizer, vergonha colectiva, vergonha social, vergonha em substituição de quem deveria tê-la e não a tem) TRÊS carrinhas de serviço pago (não, pensavam que era gratuito?, eu também!) está agora avariada. As outras duas... também! O que significa que toda a "frota" (passe este misto de hipérbole e eufemismo) está avariada.

Quem tem um pai (que é o caso dele), reformado, e com possibilidade de, com os seus mais de 70 anos e morando do outro lado do Tejo, o transportar duas vezes por dia de uma ponta à outra da cidade, consegue manter a assiduidade ao trabalho. Quem não tem este... "luxo" não pode ir trabalhar. Com que consequências?

Escreve o meu amigo, com toda a razão:

«acho bonito quando se fala da inserção dos deficientes no mercado de trabalho, porém não basta inserir, há que mantê-los lá, e nesse aspecto uma das condições mais importantes a observar é na maioria dos casos a garantia de transporte viável/fiável do ponto A para o ponto B e vice-versa; essa é uma das funções essenciais do Estado, a promoção do pleno emprego de acesso universal, não por caridade, mas porque pessoas empregadas geram riqueza e pagam impostos».

Muito bem visto. E quem é considerado deficiente é ele. Adiante.

Quando se fala da sobriedade social dos governantes de alguns raros países, o uso de transporte público, casas normais, etc, algumas vozes se levantam reclamando a dignidade da função do estado, como se a dignidade da função de cidadão estivesse abaixo dessa outra que merece carros topo de gama e palacetes pagos com subterfúgios vários acima de qualquer questionamento. Não sinto necessidade que os meus governantes andem em transpotes luxuosos e a comer caviar para me sentir digna. Assim como não defendo um modo de vida miserabilista para ninguém e os senhores governantes merecem, tanto como os outros, uma vida confortável e facilitada que os liberte para o serviço comunitário (que era o que deveria ser o seu trabalho, são servidores e isso devia ser a sua maior honra e orgulho) . Não vejo que passe pelos excessos e luxos a dignidade da função de estado. É uma visão ainda muito arcaica acerca do que é a dignidade de um governante. Qual a dignidade de um carrão com um ladrão lá dentro, como pode ser o caso de um ou outro (atenção, não estou a generalizar...)? Um ladrão dentro de um carrão passa a ser mais digno? Um carro e uma casa de luxo funcionam como uma espécie de maquilhagem? E as pessoas com deficiência que essas sim, necessitam mesmo de ser transportadas para irem trabalhar e tendo uma maior fragilidade física não deveriam andar a percorrer Lisboa ficando sem tempo para repouso, tratamentos ou lazer!, essas não merecem? Não precisam? Três carrinhas para a cidade inteira? Devem estar a brincar connosco!

E quando as três carrinhas se avariam sem prazo à vista e ninguém faz nada? Só podem estar a insultar-nos!

Quanto custa um carro topo de gama da frota (essa sim, verdadeira frota que não acredito que se limite a três) governamental? Alice no País das Maravilhas continua de uma actualidade chocante. Eu sei que este mundo não é perfeito, mas não exageremos... estamos ou não numa chamada democracia do mundo dito civilizado? E para que serve isso?! Para eu poder indignar-me aqui sem ir parar à prisão? É pouco, muito pouco, se a frota continuar reduzida a três carrinhas e ainda por cima avariadas. A democracia e a civilização não estão acima de qualquer suspeita. Um democracia "filosófica" não é nada se não mostrar sinais de operatividade nestas zonas sensíveis, e se os deficientes, os doentes, os velhos (ah!, linguagem tão pouco civilizada, tão pouco moderna...) e todos os mais frágeis continuarem no final da linha das prioridades.

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