2016-08-31



Risoleta C Pinto Pedro


A mais bela canção de amor





Ouvia no outro dia a Antena 2, que transmitia um programa sobre e com canções de amor. Existem belas canções sobre o tema, mas outras são insuportavelmente decadentes, deprimentes e plangentes. Há uns tempos largos, Nuno Michaels escreveu sobre isto de uma forma muito lúcida. Como é seu tom.

Pus-me à escuta com o Espírito Santo de Orelha, imagem tão expressiva para a qual tão bem o nosso querido filósofo António Telmo alerta. Alertei então o Espírito Santo, essa formidável energia que mantém a vida, e convidei-o a ouvir comigo aqueles versos da desgraça. Um deles falava de uma «dor que vem de muito longe». Já não há pachorra para o amor a rimar com dor, mas o Espírito Santo na minha orelha começou a segredar-me umas coisas e não é que tinha razão?

É que a dor do amor, cuja responsabilidade os amantes atribuem ao amor actual, ao objecto do seu amor, afecto, desejo, obsessão, por aí fora..., não tem, na verdade nada a ver com o desgraçado (a) do presente, afinal inocente, apenas um actor a representar a antiga dor no palco actual.

Na verdade, cada dor, venha ela do lado do amor, da saúde, do trabalho ou de qualquer outra área da nossa vida, é sempre um símbolo. Um símbolo que dói, que deita lágrimas e sangue, mas não é mais do que a actualização daquela dor original com que tudo começou.

Sabemo-lo por nós, sabemo-lo pelos nossos companheiros de viagem nesta vida. Um renascedor tem fichas e fichas de casos que comprovam isto, que não é uma teoria, mas que qualquer pessoa que tenha passado por um processo de renascimento enquanto caminho de arqueologia e auto-consciência bem sabe.

Ou é logo na concepção, que pode acontecer no maior dramatismo, como uma violação, mas nem tem de ser assim; para o futuro bebé, futuro homem de negócios, futuro avô, o registar nas células com algo de muito violento, basta que a mãe tenha vivido dentro de si a cena nupcial como uma violação, no seu silêncio, para isso já fazer parte do dote do filho, da filha; um casamento "arranjado" ou contrariado, um casamento "tardio" porque sim, ou para não se ficar sozinho, uma concepção como quem faz um negócio, como quem não sabe que fazer, como quem prende, etc, etc, etc, as possiilidades são infindas..., estamos a falar da história da humanidade. Nada de excepcional. Cada um tem a sua história para contar. Ou silenciar. Poderíamos seguidamente falar da gestação, dos medos da mãe, dos arrependimentos de ambos, das raivas, das ameaças, depois o nascimento, das primeiras horas, dos primeiros dias de vida, os abandonos, mais uma vez os medos, os arrependimentos, as indisponibilidades, o ficar porque sim, para que não, o partir como quem foge, … nem sequer tem de se revestir de ingredientes trágicos ou dramáticos, aparentemente até pode ter sido tudo… “normal”, por fora tudo harmonioso, em rosa ou azul, mas o bebé, que é uma espécie de vidente, “sabe” o que vai dentro de cada um. E principalmente de si próprio. Tudo recheado de potencial «para mais tarde recordar», viver e amargar. E quanto mais tarde, mais arde. E como o que arde cura, não esqueçamos que estes teatros que vamos repetidamente vivendo, que a vida, essa grande encenadora nos vai proporcionando uma e outra vez como aquelas peças de teatro que nos palcos de Londres ou de Nova Iorque ficam anos em cena, porque têm sempre público, também as nossas "cenas" muitas vezes têm tendência a perpetuar-se, porque há sempre público que somos nós e que enquanto não tivermos percebido e integrado bem aquela «dor que vem de longe» teremos de continuar a assistir à representação como se fosse de agora e a olhar os actores como se fossem reais. Até cair o véu da ilusão e podermos finalmente relacionar-nos com os seres reais que somos nós, que são os outros, sem as máscaras dos papéis que lhes (nos) vamos atribuindo. Nessa altura, a dor que veio de muito longe pode regressar para lá, o lugar onde pertence, de onde veio, porque finalmente estamos livres dessa máscara que tanto tempo transportámos. Pode dar um bocadinho de trabalho. Ou não... Exige alguma coragem. Isso sim... No mínimo, uma dose razoável de desespero, de "saco cheio", da gota de água que faz transbordar o copo.

Até lá, vamos sofrendo mais um bocadinho, só mais um bocadinho, até irmos conseguindo aguentar, a coisa ainda não está no ponto, como dizem os cozinheiros. Cozinheiros e encenadores sabem muito sobre a vida.

Tem efeito reversível? Não tem. E para que deveria tê-lo? Deitar fora material preciso e precioso para a aquisição da consciência? O bebé com a água do banho? Não seria boa ideia. Mas é altamente reciclável. O que significa que há um processo alquímico em que os metais pesados com que fomos recebidos têm a possibilidade de se transformar… em ouro. Afinal, somos nós o tesouro. Por isso Pessoa escreve que «tudo vale a pena quando a alma não é pequena». E tem razão. Precisamos de crescer, amadurecer, ser até um pouco ou até muito triturados até à ampliação da alma, ficarmos mais experimentes, mais sensíveis, mais compassivos, mais… humanos, e quando chegamos àquele ponto… o tal em que “tudo vale a pena” o fogo alquímico está pronto, preparadíssimo para nós. É o momento em que a dor se transforma em amor. E esta rima sim, está certa, não é deprimente, nem plangente nem decadente. É o regresso a casa depois de tudo termos experimentado. Mais ricos. Conhecedores dos grandes teatros do mundo e dos actores. Finalmente, ao fim de tanta representação, nós também… encenadores. Inspiração, experiência e sabedoria não nos faltam. Nem coragem. Já não temos medo de perder o que sempre foi nosso, o que sempre será nosso. Estamos prontos para a grande canção. Porque, pasme-se, descobrimo-nos também poetas e compositores.

Para rematar, falemos agora um pouco do método: isto pode fazer-se e conseguir-se à força de muita pancada, cabeçada, decepção, solidão, abandono, discussão, e os ingredientes que toda a gente conhece, ou então… através da respiração associada à psicologia espiritual. Já que a qualidade do que pensamos vai afectar directa e indirectamente a qualidade das experiências que temos na vida.

Existe um responsabilidade que é possível desenvolvermos, sobre o que até aqui julgávamos (e era) mecânico, como o pensar, o agir e o sentir. Aqui está a chave, e a forja é a respiração consciente e circular. Tomarmos o poder, assumirmos o trono da nossa própria mente é abandonar de vez o estatuto de escravos, deixarmos a viciosa e viciante consciência de vítimas. Sermos, no fundo, o encenador, compositor e criador dos dias futuros. Onde os dias passados deixarão de se espelhar de forma trágica, mas útil, integrada, no sentimento de que, afinal, tudo, mas mesmo tudo, valeu a pena. Arquitectos do futuro não podem deixar de ser grandes recicladores. Aqueles que criam reciclando as dores.

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