2016-05-04



Risoleta C Pinto Pedro


AS TUAS MÃOS

Na fotografia,
a mão direita, semi enrolada sobre si mesma, como se não sabendo o que fazer.



É uma mão que recordo já muito deformada, os ossos esquecidos da original forma criaram esculturas desordenadas pelo interior da tua pele. Tal como a tua coluna. Mas nada disso te impediu nem do trabalho nem do sorriso, a permanente boa disposição. Pelo menos para mim.

De ti apenas me chegam perfumes: da lavanda nos sabonetes, na colónia, nas roupas, na cama, nas gavetas. Do fumo da lareira que acendias logo de manhã para aqueceres as águas necessárias: ao pequeno almoço, às higienes, sei lá para que mais... Dos alimentos que cozinhavas como se fosses um chef ao serviço da família real. Era sempre festa, quando eu estava em tua casa. Havia também o perturbador odor do vinho do Porto com que, em tua casa, eu acompanhava os almoços. E o cheiro do sabão no chão e no alguidar de barro onde a roupa ficava de molho. E as camomilas com que fazíamos pulseiras e colares, que me encorajavas a colher na vasta planície que se estendia logo a seguir ao portão do extenso quintal.

Só o quintal já era um paraíso. Com a planície atrás era o próprio infinito, um Éden inimaginável a perder de vista.

No meio de todos estes perfumes havia as tuas mãos, sempre inquietas, sempre activas, ao serviço da felicidade proporcionada por tudo o que na tua casa havia: beleza, cheiros, sabores, sorrisos, humor.

Na fotografia não sei que aconteceu à mão esquerda, talvez escondida atrás do corpo. A direita pousa algo tensa sobre a saia, como quem se impacienta pela não reclamada pausa.

Não sei o que aconteceu aos desenhos dos pássaros que por lá havia. Creio que te escondias para os fazeres, talvez esperasses que todos dormissem para as tuas mãos voarem. Como as tuas mãos, também os desenhos se ausentaram.

Agora, na fotografia, apenas uma mão. Olho para ela e para a minha e acho-as parecidas, embora as tuas nunca tenham conhecido um teclado, fosse ele de piano, máquina de escrever, computador, telemóvel ou Android. Na verdade, em relação aos Androids já nem podemos falar de teclados, o que revela a inutilidade dos teclados. Tanto teclar para novamente... nada. Razões tinhas tu, utente principal do teu mundo real onde criaste um mundo virtual aonde, por vezes, me apetece regressar.

Por isso converso contigo todos os dias, várias vezes ao dia. Digo-te quando vou sair e saúdo-te quando chego. Sempre na esperança de ver aparecer a outra mão segurando um colar de camomilas amarelas ou aquela que na fotografia repousa acenando-me como tão bem recordo nas chegadas e nas partidas.

Enquanto isso não acontece, desenho pássaros. Mas nunca, nunca, chegarei aos teus calcanhares, avó andorinha. Por isso conto com as tuas mãos.

Mãos poderosas, mágicas, criadoras, sempre cheias de tesoiros na manga, a revelar, a manifestar, a materializar os meus objectos de desejo.

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