2016-04-20



Risoleta C Pinto Pedro


Pernas, para que vos quero?
(Uma lição de estilo)






Fui surpreendida, aqui na minha rua aparentada a aldeia, com mais uma aparatosa cena, quando um vizinho, que logo se recolheu, atirou pela janela duas pernas de manequim, ou melhor, a parte do corpo da cintura para baixo. As pernas separaram-se, ficando cada uma para seu lado e também um dos pés.

Logo acorreram as vizinhas e gerou-se o ambiente de Pátio das Cantigas. De vez em quando acontece, fora e dentro dos prédios. Serenatas de insultos entre rua e janelas, "mimos" gritados de patamares e bater de portas, baldes de água sobre cães com os quais não se simpatiza, discussões por causa dos defeitos dos outros, mas com miopia para as suas próprias "competências", a polícia a ser chamada por motivos ridículos que logo detecta sorrindo e encolhendo os ombros como quem já viu o filme muitas vezes e virando costas, discussões por causa da propriedade, utilização ou localização dos caixotes do lixo, uma animação, pessoas do século XXI a deixarem o seu lixo logo de manhã à porta dos vizinhos, um requinte pré-civilizacional.

Mas também há pessoas equilibradas, gentis, tranquilas, compassivas, solidárias, fraternas, pacientes, atentas. Sei por experiência.

Apesar do meu cuidado para que não haja correrias nas horas de descanso, não consigo impedir, durante o dia, algumas maratonas de cães a correrem atrás um do outro, atrás dos gatos, com grandes efeitos de derrapagem nas curvas. Não é proibido, mas procuro que não haja excessos, e reconheço que os meus vizinhos de baixo são dos seres mais gentis e compassivos que conheço, por compreenderem as necessidades que os animais têm de brincar. Para não falar das quedas dos gatos, quando eram pequeninos, no seu terraço. Sendo sérios candidatos, não são eles os únicos seres gentis e merecedores do Nobel da educação, se o houvesse. A este prédio coube a sorte de lhe caber, por lhe ter sido atribuído pelo destino, um escol civilizacional e de gentileza, com o preço que sempre há a pagar, e a excepção que confirma a regra. Há de tudo. Como no Pátio das Cantigas. Os que compreendem melhor os processos psicológicos, acabam por adoptar um estilo compreensivo entre o estoico e o epicurista com um sorriso subtil de quem lamenta, às vezes diverte-se e não pode fazer nada.

Mas voltemos ao surpreendente episódio das pernas. De vez em quando saem coisas inesperadas da mesma janela. Às vezes são sacos de lixo. Nesse dia foi meio manequim.

Ficou partido ao meio, logo, dois terços. Como se partiu também um pé, para sermos rigorosos temos de dizer que foram três quartos do corpo.

Ficaram ali no meio da rua assistidos pelas vizinhas, umas montadas nas janelas, outras apeadas, que depois se retiraram porque era hora de fazer o jantar.

As pernas ficaram onde tinham caído. No meio da rua.

O motorista de um carro que passou, possivelmente não sensível à beleza ou ao abandono, não reparou e atropelou-as. O condutor saiu do carro a praguejar e atirou com as pernas (não as dele, as do manequim) para o passeio. Uma pernas femininas, elegantes de fazer inveja às mulheres que inutilmente se esforçam por imitar a forma dos manequins, quer estejam parados na montras quer desfilem nas passadeiras da moda. Ou sejam atiradas das janelas. Tinham, contudo, um problema, estas pernas. Faltava-lhes a parte de cima do corpo, aquela que não é um pormenor, porque inclui a cabeça com o indispensável recheio, o coração e outras miudezas que fazem alguma falta e em algumas situações dão jeito. E estavam uma para cada lado, com um pé separado. Mas continuavam a ser elegantes. À noite, as pernas já não estavam descuidadamente deitadas no passeio, mas encostadas à parede, ao lado do caixote do lixo, e a fazer o pino.

Como era domingo, não houve recolha. De manhã ainda lá estavam, mas passados uns minutos já tinham desaparecido. Ou foi o autor do despejo, arrependido, ou outra alma caridosa, compassiva, que terá perguntado em silêncio: "Pernas, para que vos quero?".

Seja como for, pernas que já não servem foram alvo de profundo interesse entre o domingo ao fim da tarde e a segunda a meio da manhã.

E eu vejo-as como metáfora. De si próprias. Pernas metáforas de pernas. Pernas abandonadas, pernas esquecidas, pernas rejeitadas, pernas atropeladas... Mas também são sinédoque. Que os meus alunos muito bem sabiam ser a parte pelo todo, como a "Ocidental praia lusitana" representando Portugal.

Neste caso, as abandonadas pernas deitadas pela janela representando o corpo no seu todo e o desprezo que nós ou as nossas mentes, umas mais, outras menos, mas praticamente nós todos votamos ao nosso sagrado corpo ou cálice que neste planeta amorosa e pacientemente nos acolhe, a nós, abusadores, mal educados, patológicos moradores de um espaço onde nos consideramos merecedores de todos os privilégios e dispensados de todos os deveres. Num condomínio de luxo que é o lugar onde habitamos, porque é isso a Terra, apesar do desprezo com que a ignoramos e ao mesmo tempo maltratamos, novos-ricos com comportamentos de bárbaros a bater com portas e a deitar pela porta ou pela janela fora impropérios, queixas e lixo interior muito pior do que aquele que os cães ainda deixam nas calçadas. É que, como diz Edgar Morin, julgamo-nos civilizados, mas ainda estamos na barbárie. Os dejectos dos cães não são a pior coisa que deixamos sair de nós. Por isso precisamos de ter muita paciência para o processo lento em que estamos. Não é má ideia treinarmos connosco. Os outros agradecem e beneficiam.

É um facto comprovado que cuidarmos de nós mesmos, longe de ser um acto de egoísmo é, pelo contrário, uma imensa generosidade para com o mundo. E um acto de inteligência. Quanto mais inteligentes mais bondosos, disse António Telmo, esse sábio da voz doce.

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