2016-02-10



Risoleta C Pinto Pedro


Um olhar à Agostinho da Silva


No próximo sábado, dia 13, celebra-se o aniversário de Agostinho da Silva. George Agostinho faria 110 anos. E faz. Porque continua vivo. Apesar das simplificações, da vulgarização, da banalização. Ele não se resume a dois ou três aforismos. Aquele de que estamos a falar foi um pensador profundo, um escritor talentoso, um cidadão inconformista e consequente denunciador da ditadura, um ser humano lúcido, consciente, solidário, inquieto e em permanente evolução e transformação. Ponham superlativos em todos estes adjectivos, que apenas não usei para não afectar a discrição, a sobriedade e a elegância de que ele gostava e usava, apesar de ter sido profundamente excêntrico e extravagante, no sentido mais profundo e respeitoso da palavra.

Aquele que conseguiu este quase impossível paradoxo de aliar a um olhar crítico, uma tremenda inocência. Lúcido e desculpabilizador, atento e divertido, agudo, profundo e leve. Mas não superficial. E esse é o equívoco.

Recordo-me de ouvir contar, ou de ter lido, um episódio ocorrido com um dos seus amigos, o escritor Fernando Dacosta, a propósito de uma vez, há muitos anos, em que entraram os dois num Centro Comercial. Estes eram ainda uma raridade e aos olhos de Agostinho apareceu como um enorme brinquedo deliciosamente inútil.

Foi algo do género que verbalizou, qualquer coisa como nunca ter visto tanta coisa inútil junta, mas sem o dedo acusador, sem a voz amarga, sem a mente em agonia, antes com um sorriso irónico e compreensivo e até divertido, como uma criança. Perante uma raça humana que ainda acredita necessitar dessas coisas, de uma humanidade profundamente criativa e habilidosa, mas tão ao lado, tão escandalosa e quase divertidamente ao lado, sempre a falhar o alvo, sempre a perder o foco, a brincar ao conhecimento, aos divertimentos e às guerras e esquecendo a sabedoria e a felicidade. E o estudo, e a profundidade. E o Rigor e a Graça.

Imagino-o vagueando pelos corredores do centro comercial, encantado com tanta coisa inútil, ele que só precisava do essencial e uns gatos por perto, para ser feliz. Mas não acusando quem ainda acreditava necessitar daquilo, antes sorrindo com ternura como se faz perante as coisas das crianças.

É esse exemplo que cada vez me aparece mais adequado tomarmos para nós mesmos. Perante os outros? Quando for o caso. Perante nós? Sempre. Nós, uns dias de um lado, outros do outro, de manhã de um lado, à tarde do outro, nós atiradores furtivos de uma felicidade esquiva porque procurada nos lugares errados, nós meninos mimados suplicando perante um deus impotente os brinquedos que não estão ao nível do que nós somos, chorando por algo que se quiséssemos teríamos, mas não nos convém. Nós que percorremos este imenso centro comercial que é como vemos a terra e apontamos para as montras e fazemos birras esquecemos que já é desde sempre e para sempre, e tão maltratadamente, nossa. É só aceitarmos o que realmente nos pertence. Quando conseguirmos acreditar nisso.

Como acreditava Agostinho, que andou pelo asfalto e pelas selvas deste mundo pensando, lendo e escrevendo livros, conversando e consertando o que achava mal. Como se estivesse em casa. E de facto estava. O Mundo era a casa dele. Não tinha limites. De Barca d’Alva ao Japão, passando, demoradamente, como sabemos, pelo Brasil. O que ele achava mal era a injustiça, a desigualdade, a convenção, o hábito inconsciente e a superficialidade. Mas não se ficava no criticar. Transformava tudo o que podia à sua volta, esta criança sábia e irrequieta que sempre foi. Não o fazia ligeiramente. Um poderoso e imbatível suporte filosófico genuinamente português e paradoxalmente universal sempre sustentou a sua acção. Era um estudioso, incansável e febril.

Hoje há quem tente reduzi-lo a um mero “boneco”. Mas ele era, como muito bem demonstrou António Cândido Franco na biografia que fez dele, um “colosso”. Para se entender isso é preciso esquecer os aforismos e as frases feitas que aí aparecem repetidas de forma preguiçosa e inconsistente, e lê-lo. Mesmo. Esquecer as entrevistas, agarrar nos livros e ler. Começar por uma ponta e acabar na outra. Talvez alguma coisa de verdadeiramente importante, então, aconteça. Dentro e fora de nós.

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