2015-12-09



Risoleta C Pinto Pedro


Uma crónica de Jerusalém



Esta crónica custou-me cerca de dez dólares, nove euros e setenta e quatro cêntimos. Mas não me importaria de dar mais por ela, e já explico.

O Montepio obriga-me, para meu bem, porque os bancos sabem muito bem o que é o nosso bem, a ter um cartão de crédito, coisa que eu dispenso, que não uso, mas não uso mesmo, nunca fiz pagamentos com ele nem sequer por internet, e até me esqueço que o tenho, mas ter um cartão de crédito, dizia, para o Montepio é para o meu bem. O que torna ainda mais surpreendente o telefonema recentemente recebido do banco, informando-me que alguém, em Jerusalém, no dia 25 de Novembro, usara o meu cartão numa compra de MB no valor de dez dólares. Gostaria de ter sido eu, mas não fui. Gostaria de ter estado em Jerusalém e até usaria o cartão, se fosse caso disso, só pelo prazer de ali estar. Mas não. Repito: não. No dia 25 de Novembro, possivelmente terei estado a escrever, a ler, a estudar, a limpar o caixote dos gatos, a passear com os cães, o costume. Jerusalém não, infelizmente.

Há uns tempos atrás transportei-me até lá, mas através das personagens de um dos meus livros.

O mais longe que viajei, nesse dia 25 de Novembro, foi a Sete Rios, à Rodoviária, levar a minha mãe.

Fui então ao Banco tentar perceber o que acontecera, coisa que não foi possível, percebi que o assunto é uma espécie de segredo dos deuses, um mistério inexplicável, o meu gestor de conta fecha-se em copas, como se estivéssemos na ditadura e eu lhe perguntasse o que pensa do Salazar. O simpático gestor aconselhou-me a ir à polícia apresentar uma queixa, para, com essa declaração, voltar ao Banco a fim de que o meu caso seja analisado e quem sabe, o dinheiro me possa ser devolvido. Uma verdadeira corrida de estafeta. Uma estafa.

Entretanto,fiquei ainda a saber, irei receber outro cartão. Quer queira quer não. É para meu bem. Explicaram-me com o mesmo argumento dos adultos quando eu não queria ingerir algum alimento ou remédio. Implorei que não o fizessem, é totalmente inútil e ainda me causa desgostos deste tipo. Que não pode ser, faz parte das regalias e tenho o dever de receber esta regalia, ainda que não a queira. Mais: estou cheia de sorte por essa regalia não incluir ser obrigada a usá-lo.

Obrigada, pensei, se eu não o fizer, alguém o fará por mim. Com o meu dinheiro.

Fui então aconselhada a destruí-lo assim que o receber, como nos filmes de espionagem, já que não o quero usar. O que faz sentido, eu não preciso, e quem precisa não tem necessidade dele. É um pouco complexo, mas foi o que aconteceu.

De modo que, descrente em obter alguma informação ou sensatez ali daquele lado, fui à esquadra da PSP, onde me foi perguntado se queria fazer uma queixa-crime. A coisa estava, percebi, longe de chegar ao seu termo. Depois de esclarecida acerca da gíria legal, fiquei a saber que só poderia apresentar uma queixa-crime contra... alguém. Ora eu estava nisto apenas com o meu rosto. Tudo o resto era instituição, distância e ignorância. Quem é que em Jerusalém... quem é que em Jerusalém...

Tive então uma espécie de epifania. Em Jerusalém, no dia 25 de Novembro, rigorosamente a um mês o Natal, desta forma milagrosa, só poderia ter sido o... menino Jesus! Estava explicado. Tenho um rosto. É Ele! Para comprar alguma prenda para algum menino. Ou para si próprio, se o menino Jesus for parecido com aquele que descreve o Alberto Caeiro. Ora eu não podia apresentar uma queixa crime contra o menino Jesus. Calei-me, a muito custo, e apresentei apenas uma queixa contra um burlão anónimo, embora com um certo sentimento de culpa por estar a ser cúmplice... de mim mesma. Ou do menino Jesus.

Embora assim deixe de haver crime. O que é meu é d'Ele, não é verdade? Vive aqui em minha casa, umas vezes em cima do piano, entre o primeiro de Dezembro, dia da restauração que já deixou de ser e já vai ser outra vez, mas cá em casa foi sempre, porque menino Jesus na constelação presépio a partir do primeiro de Dezembro até ao dia seis de Janeiro é uma restauração, sinto-me restaurada só por sabê-lo ali. E quando não está ali está embrulhado em jornais dentro de uma caixa, o que acontece todo o resto do ano. Isto para explicar que vive cá em casa. O que explica que não há crime e nem devia ter feito queixa. Contudo, seria demasiado suspeito. O Montepio não compreenderia, e ainda podia ser acusada de pertencer a alguma rede de falsificação de cartões de crédito, de modo que lá apresentei uma queixa abstracta, sem rosto, levei-a ao Banco e despedi-me, antecipadamente conformada com a longa espera que irá coincidir, assim me foi indiciado, a complexa análise do meu caso. Foi preciso chegar a esta idade para perceber onde vai o Menino Jesus buscar o dinheiro para as prendas. Mas valeu a pena. E gostei de contribuir.






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