Risoleta C Pinto Pedro
Maus lobos tristes
Sobre Contos de cães e maus lobos,
de Valter Hugo Mãe
Entre a morte de um filho e a morte de um avô, a vida. A esplendorosa, poderosa e enternecedora.
Aqui encontro uma escrita não totalmente surpreendente para quem a tenha visitado antes, mas sempre admirável, mesmo para quem já tenha lido Valter Hugo Mãe.
Comecemos pelo primeiro Verbo: o prefácio. Que merece o livro, que por sua vez merece o prefácio, gentil figura de convite, se de convite necessitássemos. Autor e prefaciador habitam o mesmo planeta, o das "mil humanidades que há dentro de cada um de nós", para usar palavras de Mia Couto no seu belo e enternecedor texto iniciador.
O primeiro conto, com perfume a mundo antigo, situa-se entre a denúncia metaforizada em forma de pequeno tratado poético sobre a humilhação, e a psicologia das profundezas. O tecido, a pele, a alma, correspondências, em diferentes planos, do mesmo palco, aquele onde se encena e vive e filma e projecta a dor:
"Pensou que, remendado, o lenço começava a ser como um bicho ferido."
O lenço, palco de submissão, raiva, amor e liberdade. Esta, a vencedora, com o suporte do amor.
O conto sobre a perda de um filho vem dar razão a algo que afirmei há pouco numa conferência que fiz sobre o tema: não é preciso ter perdido um filho para poder sentir ou transmitir a dor da perda, basta ser-se poeta.
É comovente a história da mãe que na sua doméstica simplicidade tenta evaporar o mar que engoliu o filho como quem evapora a água para obter o sal, dito de outro modo: do enxofre tira sal.
Para além desta análise terna e poética de um coração de mãe, órfã de filho, procurando no mar, e não se intimidando com o infinito da tarefa, o que este lhe roubou, variados são os arquétipos, como os da infância, aqui renovados na figura de dois simpáticos e impotentes "lobo velhinho" e "monstro triste". Até me apetece arranjar um monstro assim para assustar o senhor mau (ou triste?) de uma outra história que não está neste livro, mas não menos real, que atira água para cima de cães e despeja a sua publicidade em caixas de correio alheias. Só um monstrinho consegue demover outro monstrinho. Ambos tristes.
Infinitas como o mar, as descobertas que aconteceram nas páginas como ondas, onde me encontrei umas vezes nadando, outras boiando, outras quase, eu própria, de emoção me afogando. Da narração à poesia, a reflexão, o reconto, a citação, a definição, ou arte poética, que exemplifico:
"Os poemas eram bordadinhos que se estendiam sobre os corpos de quem amava."
Tudo isto aqui encontrei: géneros, modos, estilos, mas não menos presente uma versão elegante e profunda de algo que hoje se encontra na moda, como a auto-ajuda. Sempre acreditei e estou cada vez mais convicta, de que as melhores páginas da auto-ajuda estão na melhor poesia, na melhor literatura. Como provo:
"No dia seguinte, ainda que guardemos a memória de cada dificuldade, podemos sempre optar por regressar à busca das ideias felizes. "
Melhor do que isto, só recomeçar o dia tantas vezes quantas quisermos.
Um dos aspectos mais interessantes destes contos é que já lhes conhecemos história, ressonância e contextos, mas é com este não sei quê que já se conhece, seja uma situação sociológica, psicológica ou ficcionada, como é o caso do Capuchinho Vermelho, da princesa com dificuldade em se ver alinhada pelo modelo convencional, que o autor reconta e assim reinventa o mundo.
É um livro de histórias "desconvencionais", com uma linguagem livre e expressiva espelhando um olhar diferente sobre o mundo aparentemente tão nosso conhecido. Por isso são precisas novas definições que digam claramente a mudança que uma linguagem demasiado técnica ou científica não consegue transmitir, como é o caso do brilhante e quase comovente conceito de "pessoas racionais e irracionais" em vez do talvez rigoroso, mas obscuro e frio, seres sencientes.
É o olhar quente e compassivo de S. Francisco, particularmente no conto "A Princesa com Alma de Galinha":
"Mais ela se convencia de que eram pessoas irracionais, o que não significava que fossem exactamente estúpidos ou ignorantes."
Este livro transporta, pelo comportamento das personagens, uma sabedoria terrena ou mesmo térrea, quase ingénua, telúrica e fransciscana. Material. No sentido mais nobre que a matéria pode ter.
É tudo muito simples e ao mesmo tempo requintado e complexo:
Ver ao longe, a partir do cimo de um monte, é como perscrutar o rosto do outro, permite o recuo, a visão de profundidade. O conto "O rosto" é um dos mais belos, e termina com um parágrafo sobre rosto, conhecimento, observação, atenção e amor, que se todos lessem e interiorizassem, bastaria para se salvar o mundo, porque:
"... o rosto é extenso e infinito... precisamos de estar atentos... antes que restem todas as coisas completamente queimadas".
E não é totalmente verdade o que afirmei antes: que o conto "O rosto" seja um dos mais belos. Porque cada um destes contos é um dos mais belos, nomeadamente "O rapaz que habitava os livros" sobre estes misteriosos, modestos e poderosos seres. Associados com crianças são mistura explosiva, sobretudo quando se trata de cuidar de um mundo às avessas brincando à beleza das coisas ou a salvar pássaros dentro do coração. E lobos maus. Curados por capuchinhos vermelhos que não têm a hipocrisia do sangue e assim permitem, a lobinhos esfomeados e lobos assustados, a oportunidade da salvação.
O livro continua, página a página, a confirmar a minha teoria acerca de os melhores livros de auto-ajuda se encontrarem na melhor literatura, na melhor poesia, na melhor metáfora, no melhor pensamento, na melhor analogia.
Este livro, escrito por um "detective de interiores", estaria entre os top-ten dos livros benfeitores da humanidade, se tal existisse. Porque nos diz que:
"é urgente viver encantado" e "Se esperarmos, um dia a tristeza dá lugar à celebração."
É um manual de aprendizagem de uma "inteligência apenas amorosa." Os conceitos de beleza daqui irradiados incluem os "modos de ser". Tudo isto se pode aprender com as personagens, narrador incluído, que gostaríamos de ter como amigos, esses mestres da "felicidade para os tempos difíceis."
Esta é a sabedoria urgente que nos recorda o passado, onde existem avós que concentram "todas as mais belas coisas do mundo juntas numa só." ,e no futuro onde no "verdadeiro amor tudo é para sempre vivo." Para aqueles que sabem aprender com "as pedras", a viver "da sede" de "sempre inventar a vida."
Nestas histórias, quanto "mais vistas, menos convicções na transcendência." A qual está no mundo, não é preciso procurá-la fora ou por métodos escapistas. E tudo isto acaba por desaguar, obrigatoriamente, na "adoração.":
"E a vida era adoração.", repete-se, para que não passe em silêncio, neste livro de adoração pela vida.
Alguém que fale das ilustrações, belas. Eu estou ainda em adoração do texto para crianças grandes. Porque, como afirma o autor, as crianças pequenas têm o direito de apenas quererem divertir-se com os livros. Quem precisa de ética, somos nós, os adultos. Digo eu. Este livro contém ética da melhor, de primeira apanha. Disfarçada de ficção poética. Talvez necessitemos, ou pelo menos beneficiemos com mais livros destes, servidos como doces com mel escondido, muito escondido, dentro. Para chegar ao mel é preciso atravessar algumas estradas salpicadas de sangue e não se deixar intimidar, nem com o ladrar dos cães, nem com o uivar dos lobos. É que a moral destas histórias, é, afinal, o direito à doçura. Para todos, "pessoas racionais e irracionais". Direito universal e não só de alguns. Porque, lembro, volto a citar, insisto: "a vida era adoração". E como o diabo está nos detalhes, há que dar atenção ao pretérito. Ainda por cima, imperfeito. Se era... já não é? É com este livro que é possível repor o que falta. Para ser vida. Porque adoração é dor, apenas, sem a "ação". Com ela, nestes contos, é "adoração". Ouro em acção. Sob forma de palavras bem arranjadas, como rendas bordadas sobre pele do mais amado ser.
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