2014-11-19



Risoleta C Pinto Pedro


Quotidianos

Quando se gosta muito daquilo que se faz, corre-se o risco de se deixar de fazer aquilo de que se gosta...

Era o meu pensamento recorrente há uns dias atrás, pensamento imponente, no sentido de que se impunha a todos os outros, e no entanto tão aparentemente contraditório, ou mesmo tão contraditório, ponto final.

Sou uma daquelas pessoas que têm (ou criaram) a sorte de ter o dia repleto de coisas de que gostam. Não há sapos para engolir, não há esforços para fazer, não há grandes conflitos para gerir.

Claro que não foi sempre assim, a vida tem seus tempos, o tempo suas estações e as estações suas frequências.

Vamos experimentando tudo o que há para experimentar. Já bebi de taças amargas e ao mesmo tempo de outras profundamente doces, agora chegou o tempo de taças cheias de líquido fresco, leve, saboroso e borbulhante de vida. Mas tudo foi e tudo é amor. Com diferentes rostos e sabores.

Vem isto a propósito de que atualmente tenho o dia aberto às coisas de que gosto sem que me sinta pressionada a fazer aquelas que me aborrecem, como fichas para preencher, reuniões intermináveis e coisas assim. Sinto-me livre.

Assim sendo, são saborosos e sorridentes, os dias. Mesmo com as dores que lhes pertencem.

Ainda assim, dei comigo com saudades de outros dias em que, pelo meio das tantas obrigações, eu me “obrigava” ao prazer. Para poder sobreviver, digo, viver sobre o viver

Agora não preciso, dou-me então ao luxo de estar meses sem ir ao teatro, sem ir ao cinema, sem ir ouvir um concerto. Chocante, diria eu há uns valentes tempos atrás.

Ou não, digo eu hoje, é que entre a fruição passiva e a criação, escolho, sem pensar, a criação. Porque esta tem as duas dentro. Fruo do que crio. E assim me alimento.

Mas no outro dia fui ao teatro. Deixei as botas do campo com que me arrasto atrás da minha cadela por montes e vales e dei comigo sentada numa poltrona confortável, vestida com uma roupa elegante, descuidadamente penteada como gosto, profundamente perfumada como adoro e sem ter de fazer nada: apenas fruir. Aos primeiros acordes da música de abertura da peça, disse- para mim mesma: Purcell!, e adorei a sensação de só ouvir. Sem que Purcell fosse ser utilizado para algum trabalho, como ferramenta como muitas vezes faço, com ele, com outros adorados músicos. E ficar ali sentada a disfrutar do meu perfume, do meu conforto, dos meus sentidos: pele, olhar, olfacto, audição, ajudou-me a perceber que alguém que adquiriu o vício de criar, permanentemente criar, necessita, também de aprender a estar quietinha a receber, saborear, sem porquê, só porque é bom. E eu gosto. Lembrar-me-ei de não deixar de fazer o que gosto só porque adoro o que faço.

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