2014-07-30



Risoleta C Pinto Pedro


As conversas são como as cerejas



Conversa 1:

Ela:
- Olá Y, estou na hora do almoço! Tens visto a X?
- …
- Eu vi-a no outro dia. Eram onze da manhã, e ela: “Por aqui?” E eu: “Pois, é só para quem pode!”. Não me falou de ti.

Esta foi, essencialmente, a conversa, com umas repetições e interjeições pelo meio. Mais umas perguntas sobre se queria que ela lhe levasse cerejas, se um quilo ou dois quilos, se calhar não muitas, porque depois ficavam moles, etc.

Conversa 2:

Ela:
- Olá, Z, tens visto o Y?
- …
- Eu falei hoje com ele ao telefone. Perguntei-lhe se tem visto a X e contei-lhe que a encontrei no outro dia por volta das onze da manhã e que ela não perguntou por ele e até se admirou por eu andar por ali àquela hora, tendo-lhe eu respondido que isso é só para quem pode. Depois perguntei-lhe se queria que lhe levasse cerejas. Não muitas, por causa do calor…
Isto passou-se num sítio onde ela trabalha e eu estava a almoçar. Ouvi. Mesmo que não quisesse, teria ouvido. Entretanto vim-me embora e vinha pensando: Aqui está uma conversa
Nesta caso duas, uma com outra dentro, daquelas que cada um de nós eu não, claro!!!, quem pensam que eu sou?!, já teve algum dia.

E pensei também que se hoje anotei neutramente a conversa como material literário, talvez em outra ocasião a ruminasse como matéria de crítica.

Futuramente talvez a ouça e não a registe. Mais futuramente ainda, talvez nem a ouça. Uns tempos depois talvez a escute com ternura. A ternura compassiva que se sente por aqueles que sofrem e nem sabem. Talvez num tempo ainda outro eu ouça a conversa e os meus ouvidos registem apenas as seguintes e verdadeiras palavras escondidas nos silêncios dos intervalos das sílabas:

Ela:
- Olá Y, estou na hora do almoço! Não te esqueces de mim?
- …
- Eu mereço o teu afeto e tenho medo que me esqueças, por isso te telefono. Sabes, sou uma pessoa especial e nem sabes como o meu amor é precioso. Gosto de ti como ninguém, nunca te esqueças disso. Até te levo cerejas…

Parece, mas não é, um exercício de estilo inspirado no livro do mesmo nome do Raymond Queneau, onde, a partir de um episódio banal passado num autocarro, ele o reescreve em mais de 100 versões com diferentes estilos.
Aqui, o que muda não é o estilo, é a consciência de quem ouve. A única forma de eventualmente mudar a consciência de quem é ouvido. Segundo os físicos, o comportamento das partículas é influenciado pelo observador. E eu acredito. Porque sou, ao mesmo tempo, observador e partícula.

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