2014-01-22



Risoleta C Pinto Pedro


Um sentimento à Álvaro de Campos



“[…]Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
[…]”

Ode Triunfal, Álvaro de Campos



Passo dentro de um autocarro, sentada, protegida do frio, da chuva, do vento e das filas que aguardam, do outro lado da rua, na paragem, em sentido inverso.

Pessoas que entram e saem, pessoas que chegam, autocarros que param, autocarros que avançam. A monotonia da cidade. Contudo, um sentimento confuso e difuso tenta emergir de um fundo antigo, emergir deste quotidiano repetitivo e banal.

É um entusiasmo, um sentimento de futuro, uma admiração pelo barulho, pelo movimento, pelo imparável, pelo mistério das vidas de todas estas pessoas, por tudo aquilo que elas escondem, mas os corpos de alguma forma revelam, por este anonimato animado, por esta cidade que não adormece, por esta cidade que ao pôr-do-sol ainda mais se agita, pelo fascínio de tantas pessoas desconhecidas, como se fossem meros figurantes, como se não tivessem casas, como se as suas vidas consistissem em aparecer ali àquela hora a entrar e sair dos autocarros, para alimentar a minha ficção e o meu sentimento de futuro.

Pessoas, autocarros, fumos de escape, chuva, nuvens e céu azul como pertencentes todos ao mesmo filme, como conhecendo-se todos, como se ali atrás do cenário tomassem uma cerveja juntos e depois regressassem às ruas, aos estabelecimentos, aos carros, ao céu.

Recordei a menina que, recém-chegada da província olhava para este enorme cenário e se recusava a acreditar que estas pessoas fossem como ela, tivessem casas, ocupações, preocupações, vidas comuns. Eram todos personagens épicos de um filme de modernidade que ali se desenrolava perante os seus olhos espantados.

Essa menina era eu, extasiada com a beleza dos elétricos, a pressa das pessoas, a impecável organização e fluir do movimento, a impessoalidade das personagens, a nova selva, uma natureza até aí desconhecida. Em mim, nessa menina de olhos arregalados de fascínio, reconheci hoje, dia em que este mistério desapareceu para dar lugar a outros ainda mais fundos, essa menina, repito, faz-me reencontrar Campos e ver no seu olhar espantado perante o Novo, a mesma inocência de Caeiro perante a antiquíssima natureza. Essa inocência que julguei, erradamente, perdida, mas que permanece comigo, desde sempre. Para sempre.




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