2012-05-30



Risoleta C Pinto Pedro


As pedras da calçada



Vivo numa cidade de privilégio para quem cá vive. Embora acredite que fosse igualmente um privilégio se vivesse numa outra cidade: Porto, Elvas, Évora, Badajoz, Braga, Tomar. Outras. Porque o privilégio é estar vivo e existirem cidades. E existir este planeta. Que treme. Não sei se o planeta treme por medo de nós, das malfeitorias que poderemos ainda fazer-lhe, se por ira (tão justa, tão justa ira...) se pela febre.

Treme a terra, tremem os céus, tremem as velhas e caducas instituições, tremem as nossas velhas e bolorentas crenças, tremem os nossos barbudos e desgastados e desgastantes deuses, tremem os bancos onde acreditámos que teríamos um banquinho para nos sentarmos, treme o nosso tão frágil conceito de paz assente sobre o inconsciente sentimento de guerra interior.

Mas regressemos a Lisboa, onde eu estou, onde os deuses me conduziram, criança inocente da existência dos deuses, da existência do caminho e da existência dos que guiam.

Porque sempre me senti guiada por meus próprios passos. O que pode não estar em contradição com a noção de deuses, caminho e guias.

Se me sinto responsável pelo caminho terei de trazer os deuses para dentro de mim e reconhecê-los no espelho que reflete o meu próprio rosto. É o momento em que deixo de sacrificar cordeiros no altar.

E regresso ao chão. Às pedras da calçada. Ao amor pelo chão. Amplo pavimento mosaico a preto e branco. Cores que por não existirem não se opõem, que se abraçam na alternância. Que se amam na diferença. Que se amam por isso.

Saio de casa e tenho pedras para receber meus pés. Saio de casa e tenho um colo estético e sábio para o meu corpo andante. Olho o chão sabendo que é estável e respeitável e que o piso porque me acolhe. Que pisar é pousar, não espezinhar.



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