2009-09-30


Risoleta C Pinto Pedro


Reflexões em torno do Paraíso II



Eva e Lilith. Não sei se temos de escolher. Mas convém conhecê-las às duas. Ou teremos um conhecimento imperfeito de nós. Lilith. Bem podem procurar na Bíblia Cristã. O melhor é sentarem-se, porque não a encontrarão. Mas no Talmude, sim. A primeira mulher. Criada em igualdade com Adão, e não da costela. Até aqui tudo bem, um verdadeiro Paraíso. Ao contrário da outra versão. É muito difícil engolir que num mundo em que a mulher é feita de uma pequenina parte do homem, a coisa pudesse correr bem, como é suposto correr nos Paraísos. Mas a verdade é que no outro as coisas também não correram bem. - Pudera, disse Helena, estava lá um homem.

Bom, já perceberam que Helena é uma feminista desenfreada, o que não é o meu caso, que sou uma narradora respeitável e respeitadora.

Prossigo com a história:

Aquele Adão, em vez de ter sido criado à imagem da divina Natureza, foi feito à imagem de um indivíduo de barbas que se fez passar por Deus. Não que Deus não possa ter barbas, mas também não basta tê-las para o ser. E não tenho nada contra as barbas, apenas contra disfarces, que fiquemos entendidos quanto a este assunto, para não ter de escrever outra história a explicar, é que os temas fazem fila e eu não tenho mãos a medir. Por isso, Helena não conseguiu “engolir” que Lilith protestasse sempre que, em acasalamento, ele, Adão, a remetia para a posição inferior. Ela, inteligente, não aceitava o que não era aceitável nem tinha nenhuma justificação lógica.

Toma então uma decisão radical e sai do paraíso. Um paraíso onde ela tinha de desempenhar sempre o papel de dominada não lhe servia. Criou-nos uma carga de trabalhos, mas fez bem. Deixou-nos o exemplo e a esperança. Que seria hoje de nós se tivesse aceitado a dominação? Quem nos ensinaria a desobediência, esse saudável respeito?

Prosseguindo com a história, sabe-se que a partir da sua partida, Lilith (tinha de ser…) passou a ter um percurso e uma fama demoníaca e Adão ficou muito só, pelo que Deus resolveu a situação com o tal truque da costela, suficientemente conhecido, mas que não voltou a ser repetido, pelo resultado que deu. Eva não era, pois, uma mulher, foi um recurso, a dócil, o símbolo da repressão feminina. Curiosamente, a mesma que irá mais tarde oferecer-lhe a maçã, o que originará a Queda. Ficou cara à Humanidade esta história, mas não custa perceber que quando a balança desequilibra para um dos lados o que temos é a expulsão do paraíso. É claro que isso pode depois tornar-se um factor de conhecimento, e o regresso é sempre possível. Mas não depende apenas dos homens. Ou apenas das mulheres. Mas de ambos, em cooperação. É preciso resgatar Lilith. E devolver Eva à costela, sem a qual Adão ficou incompleto. Penso até se não será por isso que os homens, sobretudo a partir de certa idade, quando (alguns) se tornam mais conscientes, passam a vida a queixar-se das costas…

Este mito da mulher inconformista, transgressora, com poderes mágicos, relacionada com o obscuro e a proibição, é relegado pela sociedade patriarcal para o domínio do demoníaco, esquecida pelos registos religiosos canónicos, mas encontramos este mesmo mito em muitas culturas antigas como na Suméria, Babilónia ou Assíria, por exemplo, para não falar na hebraica, onde nos baseámos. Ela é o feminino na sua expressão mais instintiva, selvagem e reprimida. O nosso lado a resgatar. Para bem da saúde do inconsciente da humanidade. A sério.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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