2009-06-10


Risoleta C Pinto Pedro


Penélope em Lisboa



Passa-se na Lisboa antiga. Contou-mo Helena. O prédio foi vendido e entrou em obras de remodelação. Viviam lá, em dois dos apartamentos, dois idosos a quem foi proposto saírem provisoriamente até as obras estarem prontas, após o que regressariam às suas casas. Arranjaram-lhes casas na mesma rua, que foram alugadas para que aí permanecessem durante o decurso dos trabalhos. Por acaso, eram quase em frente uma da outra. O senhor espreitava de vez em quando à janela, quase furtivamente, com o pudor que os homens daquela geração ainda têm de se mostrarem vulneráveis. Ela pura e simplesmente acampou à janela e praticamente dali não saía, excepto para dormir. A qualquer hora que Helena passasse a entrar ou a sair de casa, lá estava ela à janela, invariavelmente a mexer no telemóvel, aparentemente enviando mensagens não se sabia a quem. Isso preocupou Helena, o comportamento, o olhar, não lhe parecia nada um bom indicador do estado em que se encontrava. Por vezes um e outro trocavam frases impacientes acerca da demora das obras (que na verdade, para quem assistiu de fora, segundo Helena, até foram muito rápidas). Ela de vez em quando largava o seu posto de observação onde passou os dias mais gélidos do inverno, à janela sempre aberta, e vagueava pela rua com ar de quem espera. Um dia Helena descreveu-me uma cena triste em que um dos operários do prédio, na rua, discutia com ela e a insultava por algo que ela teria feito ou dito. Registou ainda que as coisas dela, à excepção do indispensável, que trouxera, tinham ficado no meio dos escombros de um prédio em obras. Noutra altura apareceram os bombeiros para o prédio onde vivia o senhor. Aparentemente tivera um tipo qualquer de comportamento que pela negligência (assim contavam os vizinhos, alterados) quase pegara fogo ao prédio. O episódio repetiu-se passados alguns dias. Até que o senhor foi levado, Helena não sabe para onde. Uns tempos depois soube-se que a senhora também fora levada por uma ambulância e estava mal, no hospital. Aparentemente caíra, ou pela falta de alimento, porque não se alimentara convenientemente durante aquele tempo, ou por um outro qualquer acidente de saúde. Agora, conta Helena, o prédio está pronto e belo. Os pretensos compradores começam a afluir a ver as casas. Mas os dois únicos inquilinos com direito a regressar ao sítio onde viveram e, segundo se diz na rua, nasceram, já não estão lá. Estarão (especula-se) no hospital, num lar. A casa perdeu os seus dois inquilinos por direito natural, os únicos que esperaram a casa como uma Penélope e quando a casa esteve pronta para eles, eles já não estavam prontos para ela, os únicos que a conheciam, que lhe escutaram os murmúrios das paredes em dias de terramotos, que lhes ouviram o choro das telhas em dias de vento, os únicos que conheciam os vultos dos fantasmas da casa. Helena perdeu dois vizinhos à janela, que ela sempre saudava ao passar. A rua ficou mais pobre. Helena acredita no valor insubstituível de cada ser que existe sobre a terra. Ainda que seja um idoso espreitando à janela com ar pretensamente altivo ou uma mulher de expressão perdida enviando obsessivamente mensagens por telemóvel.



risoletapedro@netcabo.pt
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