2009-01-14
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


O 28



Há lá mais vida do que no eléctrico 28! Praticamente já vi acontecer lá de tudo: namoros, assaltos, encontros, risos, surpresas, quedas, perseguições, mentiras, leituras, correrias, elevações, silêncios, manifestações, gestos generosos, atrasos, discussões. Só me faltava ouvir um pré-adolescente a cantar com voz de soprano. Uma senhora grande e forte e um miúdo mesmo miúdo, dez, onze anos, iam sentados atrás de mim. Às tantas começo a ouvir cantar, mas solfejando as notas, ouvia-se a melodia, os nomes das notas e nada do texto. Algumas músicas lembravam-me coisas que eu já cantei. O repertório, sem dúvida erudito. Olhei e era o puto. Voz branca, aguda, pura, inocente. Ia explicando e falando sobre a maestrina que eu própria reconheci pelo nome. E continuava a solfejar, mais uma e outra música. Sabia os nomes das notas de cor. A senhora ao lado dele limitava-se a ouvir. Ele cantava e falava sem parar, sem a mínima timidez que normalmente caracteriza os miúdos nesta idade e o povo português em particular quando se trata de falar em público, excepto para dizer mal dos políticos ou descompor o tipo que estacionou em cima da linha do eléctrico, em que põem a mão na anca e aí desancam e perdem toda a contenção. O miúdo continuava a desbobinar o repertório com a sua voz sopraníssima, e o que era curioso era que quando solfejava melodias o fazia de forma afinada, o que pude comprovar porque havia músicas minhas conhecidas, mas quando fazia escalas, desafinava que metia dó em tudo o que era ré ou mi. Não devia gostar de escalas, como eu. Dava cabo de todas, das maiores às menores, era tudo parecido, igual e metodicamente desafinado. Só não percebi por que as cantava, mas talvez já lhe estivesse a faltar o repertório. A certa altura disse que a maestrina os ?obrigava? a cantar em alemão e para comprovar o que afirmava, trauteou algo que vagamente soava a Bach. Mais ou menos afinado. Eu estava surpreendidíssima e encantada. A certa altura começo a ouvir lá atrás, uns adultos que viajavam em pé, falando sobre Rimsky Korsakov no meio de uma conversa repleta de gíria musical. Comecei a sentir-me no estrangeiro. Depois, a senhora forte levantou-se, cumprimentou o miúdo e saiu. Afinal, não era tia, nem mãe, nem vizinha, não lhe era nada. Senti-me num universo de ficção. Poderia ser Magritte, Escher ou Dali. Algo fora do espaço e do tempo. Ainda pensei ir sentar-me ao pé do puto que a partir da saída da senhora se calou, a ver o que acontecia, mas não tive coragem. Ou talvez tivesse tido medo da minha coragem, porque, agora que não tenho tempo para ir ao coro, uma possibilidade era pormo-nos ali os dois a trautear uma cantata de Bach. Fiquei sossegada como toda a gente esperava de mim (pelo menos na minha cabeça) e saí na paragem prevista. Bem comportada, vim para casa escrever esta crónica. Estou melhor.

Ah, esqueci-me de um dado importante. O puto era, claro, brasileiro. Eu não. A senhora, não. Mas ela foi uma personagem secundaríssima. Ou talvez não.



risoletapedro@netcabo.pt
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