2008-12-10
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


LAMPEJOS, LITERATURA, COGUMELOS E NATAL

Há um autor de que gosto especialmente, e os meus alunos também. Refiro-me a Italo Calvino, com cuja leitura inicio a maior parte das aulas. Alguns dos seus contos fazem as delícias dos meus alunos (e minhas) e incitam-lhes a imaginação. E a técnica. São prodígios narrativos. Resistem até a uma péssima tradução que por aí existe.

Um desses contos narra a história de duas famílias citadinas que, andando a ingerir clandestinamente cogumelos que apanham às escondidas uns dos outros para não partiharem, vêm a encontrar-se na mesma... enfermaria de hospital! Outro, fala de um homem que numa dada manhã, a meio do percurso para o trabalho, tem um lampejo e VÊ, realmente VÊ, com aquele olhar a que alguns chamam inteligência intuitiva (ou "protecção interna", segundo a raiz latina), vê realmente o absurdo da chamada vida real, a que alguns chamam ilusão.

Viu com tal clareza, que teve nele o efeito de um choque existencial e quis transmitir esse sentimento às pessoas, detê-las no infernal ciclo de sono em que viviam, mas quando se dirigiu a elas para lhes dizer, o lampejo desapareceu e tudo voltou a parecer-lhe normal. Este conto faz-me lembrar muito a Aparição, de Vergílio Ferreira. Vem isto a propósito de uma conversa que tive no outro dia com uma personagem minha, Helena (quando eu era pequena tinha, entre as minhas bonecas, uma que era uma Índia, que eu elegi entre todas e que fora um brinde de um detergente que se chamava Tide. Era com ela que eu conversava. Agora tenho várias personagens), esta minha personagem, a mais fiel, ou pelo menos a mais antiga das minhas personagens, que se chama Helena, contou-me uma viagem que fez a Amesterdão e espantava-se com a facilidade com que lá se vendiam cogumelos alucinogéneos. Em abstracto eu não tenho nada contra a alteração de estados de consciência, quando estou a escrever é nesses estados que estou, sem cogumelos, mas desde sempre nutri uma grande desconfiança em relação a tudo o que constituisse processos artificiais para criar esses estados, desde as drogas legais (anti-depressivos, ansiolíticos, etc), às outras. Dizia-me então Helena que produzindo em mim esses processos tanto medo, o que eu deveria fazer era vencer esse medo... pela experiência.

Eu compreendo que uma mente muito racionalista possa sentir em algum momento necessidade de estimular em si estados normalmente não experimentados, mas quando a sensibilidade que se tem é, já por si e naturalmente, um estado alterado de consciência, os processos artificiais tornam-se absolutamente dispensáveis. E até perigosos.

Experimentei há alguns anos, já adulta, num período muito difícil da minha vida, por recomendação médica, com a melhor das intenções, dela e minha, metade da dose de um anti-depressivo infantil e fui parar ao hospital com uma reacção exageradíssima do meu corpo/mente.

Por outro lado, sempre que, como por exemplo esta manhã, qualquer manhã, me aproximo da janela e vejo o nascimento do dia, as nuvens em efeitos especiais no Céu, as luzes ainda acesas da outra margem em efeitos especiais na Terra, o Tejo em efeitos especiais na água, ou uma noite destas a Lua Nova de Sagitário em transição para Quarto-Crescente alinhada com Vénus e Júpiter em efeitos especiais no Cosmo, e o milagre das estrelas no escuro da cidade nocturna, mas as manhãs, oh essas!, quando me debruço da varanda e respiro o ar fresco ou mesmo frio, e por estes dias, congelado, é como se eu tivesse ingerido todos os cogumelos das lojas de Amesterdão, como se cada manhã fosse Natal. O meu ser vive todos os lampejos do mundo, de que já em criança, recordo-me perfeitamente, tantas vezes tive a intuição, quando subitamente parava a meio de qualquer coisa em pleno quotidiano, e sentia com todo o meu pequeno corpo e ampla consciência, uma outra realidade que eu não sabia o que era, que eu não compreendia, que eu não sabia como chegava lá, porque dolorosamente de lá voltava sempre a sair, mas que eu sabia ser A REALIDADE, sem nome, sem conseguir descrevê-la ou mesmo recordá-la, mas abolutamente, indelevelmente REAL. Ia e vinha, essa realidade, a seu bel prazer, sem nenhum controlo da minha parte. Hoje sei como chamá-la a mim, embora por vezes continue a ser "apanhada" de surpresa. São lampejos cada vez mais reais, sem cogumelos, sem janela, sem nuvens no céu, sem rio, sem estrelas. Porque tenho dentro de mim o rio, a lua, as luzes da outra margem e o céu e as estrelas. Às vezes até ao limite do que um pequeno corpo consegue suportar.Estar viva é um estado de hiper-sensações, a música uma estrada no céu, as nuvens um espectáculo superior, os cheiros uma viagem, o frio na pele uma carícia no ar. Não há cogumelos para competir.

Isto foi o que eu não disse a Helena. Helena é muito mental e ouvindo-me discorrer pensaria que eu tinha ingerido um cogumelo.

Mas basta-me que me cheire a Natal para entrar num estado alterado (há quem lhe chame alienado... nomes...) de consciência.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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