2008-09-24
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


OS HERÓIS



O que me consola é que os heróis também têm as suas “coisas”, mesmo os heróis mais nobres, não os das narrativas pós-modernas em que qualquer um (mesmo o mais inesperado) pode ser herói, mas aquelas em que o herói pelas suas qualidades quase se aproxima dos deuses. Também esses heróis com pés barro vão mostrando as suas fragilidades. Sem deixarem de ser heróis. As fraquezas podem transformar-se em mais-valia, uma vez superadas, ou se não, pelo menos enfrentadas. É o caso do herói do herói d’Os Salteadores da Arca Perdida, com medo de cobras, do herói do Código da Vinci, que se confronta com algo que não recordo agora se medo de voar, das alturas ou dos espaços fechados, mas qualquer coisa assim; isso conforta-me, conforta-nos saber que a coragem e o valor não existem na ausência das fragilidades, mas a par delas. Talvez por causa delas.

Vi recentemente um filme (O Rapaz de Cabul) em que as personagens se expõem na sua mais arrepiante “humanidade”: medo, cobardia, camuflagem, egoísmo, vício, etc, etc. A narrativa não os acusa, não os desculpa. Mostra-os. Refiro-me, claro, aos heróis eleitos da narrativa. Existem outros: os ocupantes do país, os jovens futuros talibãs. Estes são tratados como seres de papel. A narrativa percorre transversalmente três períodos: antes da ocupação soviética, durante a ocupação e durante o domínio talibã.

O herói da história tem a mágoa da crença do não-amor do pai por suposta acusação de ele ser o responsável pela morte da mãe (durante o parto), tem medo dos outros rapazes, tem falta de coragem para defender o melhor amigo, aquele que por ele daria a própria vida, e para tentar esquecer o facto de ter assistido escondido à maior das injúrias a que o seu amigo se deixou submeter para defender um papagaio de papel que lhe tinha prometido , é capaz da maior das ignomínias: acusá-lo injustamente de roubo para não ter todos os dias perante os seus olhos a recordação do mal feito, do não feito.

Isto não o impede de se tornar um adulto digno, e de resgatar, mais tarde, todos os medos, todas as fraquezas, todas as indignidades. Porque assim é a natureza humana. Por isso melhor será não acusar ninguém e não desistir de ninguém. Um dia talvez nos surpreendamos a nós mesmos. Como heróis.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



Ver crónicas anteriores


LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS