2008-05-14
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


Ciclo “pianos”

I - O afinador de pianos



Já não era novo. Tinha uma casa de pianos perto de mim e um dia entrei e perguntei se afinava pianos, disse-me que sim e passou a ser o massagista, ortopedista, osteopata e sei lá que mais, do meu piano traumatizado por várias mudanças de casa. Não sei de que forma o piano o sentia.

Chegava com o seu olhar um pouco perdido e altaneiro de quem dá a entender que só me dava a honra da sua presença na minha casa porque lá existia o piano e instalava-se em frente dele com o maço de cigarros e o diapasão.

Retirado o tampo que cobre as cordas, seguia-se um trabalho de paciência da subtil cirurgia de afinar o ar.

Não dizia uma palavra, como se nada mais existisse. Apenas ele, os cigarros e o piano.

Ia agitando levemente o diapasão, experimentando as teclas, afinando as cordas, aspirando o cigarro, expirando o fumo para dentro do piano e deixando também cair a cinza para dentro dele, alheio ao cinzeiro que eu lhe punha ao pé.

Agia como se o fumo e a cinza fizessem parte do processo, do tratamento ou do ritual.

Eu nunca me consegui habituar a ver cair a cinza para as entranhas do meu piano, teimava em rondá-lo de longe sempre à procura de coragem para lhe dizer que não devia fazer aquilo, ou de lhe perguntar se não seria melhor deitar a cinza no cinzeiro, ou se tinha a certeza que a cinza não entupiria qualquer coisa no mistério da música. Nunca tive coragem.

No final levava-me uma ninharia, comparando com o que era o preço médio de que eu tinha conhecimento. Como se se desculpasse de fazer do piano um cinzeiro, ou como se o seu trabalho não tivesse preço, e como tal pouca importância teria o que recebesse. Inclino-me mais para a segunda hipótese. Agora que o meu piano deixou de fumar, porque o afinador deixou de respirar, ouço às vezes uma saudade no som de certos acordes. Penso que esta saudade é do piano, não minha. Já experimentei começar a fumar para lhe renovar o ar, mas não consigo engolir o fumo e desisti. Experimentei o incenso, consegui perfumar um pouco a música, mas não desapareceu o suspirar. Fica um pouco melhor com Bach e Satie, mas profundamente melancólico com Beethoven e Chopin. Os ares românticos não lhe fazem bem.

Perdida a esperança de conseguir alguma vez fumar, resta-me apenas renovar o repertório.



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