2008-04-30
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


“E quindi uscimmo a riveder le stelle”



“E então nós saímos para voltar a ver as estrelas.”

É o último verso do Inferno de Dante, proferido pelo poeta após atravessar todo o Inferno na companhia de Virgílio.



Belo em qualquer língua:

“It was from there/ that we emerged, to see— once more— the stars.”

“d’où nous sortîmes enfin pour jouir du spectacle des cieux”

“Y entonces salimos a rever las estrellas”

Também poderia ser uma definição de felicidade.

De facto, a felicidade pode passar por sentir a terra debaixo dos pés e o céu em cima. Só o facto de se ver o céu em cima, lá onde sempre esteve, onde sempre nos disseram que estava, onde nós todos os dias o vemos mal levantamos os olhos do sono, pode, por si só, ser uma experiência de céu. É então que vivemos o extraordinário paradoxo de o céu passar a estar dentro de nós, digo dentro do corpo, lá onde sempre nos disseram que não estava. Mas onde nós podemos senti-lo. E isso é, também, a felicidade.

A felicidade, que vem sendo um conceito algo desqualificado por uma certa intelectualidade que acha que a busca daquela é uma coisa para mentes “simples”, desqualificada por responsabilidade de perversas interpretações de algumas religiões, de simplistas pseudo-filosofias, desqualificada pelas tentações totalitárias de algumas utopias políticas que oferecem felicidade em troca de tudo, troca que pode ir do silêncio ao sangue, pela perversa utilização da publicidade que oferece carradas dela a troco de dinheiro e de sacrifícios vários.

E no entanto ela existe e é simples e muito, muito barata. Ou melhor, “elas existem”. Felicidade não é um estado contínuo nem uniforme, nem se mede por coisas, nem se pode comparar ou comprar. Mas podem multiplicar-se os momentos felizes nas nossas vidas. Que não são incompatíveis com lucidez, já que a felicidade é uma forma de luz, tal como o estar lúcido, que é também estar na luz.

Dependendo das pessoas, a felicidade pode estar nos mais diversos estados e sítios.

Tal como Da Vinci escreveu uma vez que “la pittura è cosa mentale", também a felicidade o é. E no entanto também radica no corpo.

Basta por qualquer razão ou perturbação experimentarmos no corpo a ausência de relação com a terra, ou a consciência demasiado aguda da rotação dela, em que já nada está onde parecia estar antes, onde o tecto roda vertiginosamente e o nosso pobre corpo mais parece uma ervilha enrolada sem forma, sem luz e sem expressão, tentando agarrar-se ao nada que lhe foge, e quando a ordem se restabelece após este caos, a sensação dos pés sobre a tábua ou sobre a relva, a sensação do azul em cima e das coisas na linha do horizonte e a estabilidade disso, só por si, pode oferecer um dia (no mínimo) de felicidade, mesmo sabendo que uma outra vez tudo pode inverter-se, mas a ordem existe e regressa ciclicamente. E nós podemos vê-la, revê-la e senti-la e voltar a senti-la sempre que estivermos disponíveis para olhá-la.

A grande diferença entre o que quer ser feliz e o outro, é que o primeiro está atento ao regresso cíclico da ordem e acredita nisso. O outro, por não acreditar nela, faz parte do caminho ao seu lado e nunca a vê. Isso pode levar a estados depressivos de profundo sofrimento. Libertar-se disso parece tão difícil e é tão simples (talvez por isso) como abrir os olhos. Ser lúcido.



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