2008-01-30
QUARTA-CRESCENTE

Risoleta Pinto Pedro


DANÇA FORA DA RODA

Passada
quatro
rodas
passo
rota
falsa
roda.
Passada
flecha
rumo
rota
rente
à valsa
roda.



No dia em que o condutor de um autocarro da Carris com passageiros dentro passou ao pé de mim e me perguntou com naturalidade de turista onde era a Calçada dos Barbadinhos, eu acreditei que poderei ouvir, a subir a minha rua, a campainha do eléctrico 28, mesmo não havendo aqui linhas de eléctrico, mas isso é só um pormenor. E que essa e outras maravilhas podem acontecer, que não há limites para as imensas possibilidades de coisas que podem acontecer neste lugar mágico que é a Terra, que os autocarros podem perder o rumo e os eléctricos o trilho, assim como eu posso perder os medos e os automatismos e que os milagres afinal não existem porque são da natureza do quotidiano, nós é que não damos por nada, porque andamos, uns demasiado distraídos e outros demasiado concentrados, o que vai dar ao mesmo.

Esta história com que iniciei a crónica não é uma ficção. Pelo menos para mim, que a vivi. Hoje pode acontecer algo verdadeiramente maravilhoso e extraordinário, muito para além da minha capacidade de imaginar. Hoje, com a ajuda de um condutor da Carris sem orientação e sem mapa, eu abri a porta a todas as possibilidades e activei uma grelha mental outra: a da excelência. E fiquei pronta para o novo, o maravilhoso e extraordinário na minha vida e na de todos os que compõem o meu mundo, a maior parte dos quais nem conheço. E tudo isto por causa de dois pãezinhos comprados à última hora na loja de conveniência do Campo das Cebolas. Mas essa história é ainda tão mais extraordinária que nem me atrevo a contá-la, ou então terá de aparecer muito transformada numa outra crónica. Não há como a ficção para conter os excessos do real. Por hoje, a lição é apenas a de que os eléctricos podem sair dos carris, os autocarros podem sair da rota da Carris, e eu posso sair dos automatismos do tempo dos dinossauros. Os do costume.

Nunca mais olhei da mesma maneira os condutores dos autocarros. Nem ninguém. Cada condutor de autocarro passou a ser um potencial desobediente de percurso. Cada pessoa é um potencial libertador da dor do ser. Mesmo o mais improvável. Sobretudo o mais improvável. A começar por mim.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


Ver crónicas anteriores


LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS