2008-01-23
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


SEGURANÇA PRIVADA

Vou a passar de carro perto de um bairro daqueles… difíceis. Atravessando-se à minha frente, um rapaz com todo o ar de ser dali, quase me obriga a parar. Atravessa lenta e desafiadoramente fora da passadeira. Como se não bastasse, pára mesmo à minha frente. Objectivo aparente: apanhar uma beata do chão. Quando se ergue vira-me ostensivamente as costas e observa minuciosamente a beata. Parado, no meio da estrada, eu parada para não o atropelar, a ver em que vai dar aquilo. É então que olho com atenção para as costas dele e no blusão que traz vestido a espantosa expressão aí gravada: “Segurança privada”.

Fico perplexa como perante uma revelação. É uma revelação. A verdade existe nos mais desencaminhados caminhos, nos mais desencontrados lugares. “Segurança privada”. Afinal, a única segurança que existe. Nem condomínios fechados, nem esquadras da polícia, nem seguranças armados, nem guardas-nocturnos, nem companhias de seguros, nem seguros de saúde nos seguram. Somos nós o guarda-nocturno e diurno em condomínio aberto e segurança e seguro e saúde. Ou não haverá nunca instituições que nos segurem. E é o que vamos observando: não há instituições ditas de segurança que nos cheguem: cada vez mais esquadras, cada vez mais armas, cada vez mais polícias, cada vez mais seguros de saúde e de doença e de incêndio e de roubo e de inundação e de vida e de morte e do diabo a sete e cada vez menos segurança. Porque tudo está baseado num imenso equívoco desde que foi proclamado esse outro enorme engano de que o inferno são os outros. Quando na verdade o inferno, o nosso inferno, somos nós. E também o céu. Temos tudo. É só escolher. Tão simples, tão simples… e tão difícil. Tão aparentemente utópico. Ali, naquele “não lugar” (é o que significa “utopia” e era onde eu estava, foi onde se deu a epifania) eu percebi também que a utopia é possível. O equívoco é que a temos procurado em lugares, quando ela apenas se realiza em não lugares como aquele onde eu estava: dentro de mim.

O rapaz vira-se com a sua beata, olha-me com ar “seguro”, sorrio-lhe, retribui, agradece, afasta-se um pouco inseguro, surpreendido com este estranho e diferente sentimento de segurança que vivemos na troca dos sorrisos. Privada.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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