2007-12-12
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Dos pombos… à pomba

O meu vizinho chamava-se Rodrigo e era caçador. Eu tinha 2, 3, 4, 5, 6 anos. E uma completa ausência de sentido crítico. A vida eram sensações, surpresa, observação, espanto, espanto, espanto, contínuo espanto com o estranho mundo dos adultos. Tão natural era o espanto que o mundo passou também a ser natural. Havia tudo a descobrir. Do Alentejo, pelo correio, chegava-me de vez em quando uma caixa com passarinhos fritos que me enviava a minha avó. A menina sem apetite que eu era, achava-os deliciosos. Tão deliciosos quanto um prato vegetariano que a minha mãe me fazia, esculpindo sobre um prato bonito o corpo de uma tartaruga em puré de batata com patas de cenoura, olhos de azeitona e uma pequena cauda feita já não sei de que legume. Eu também gostava disso. E do pequeno mimo a meio da manhã na escola, que minha mãe me levava: uma garrafa de leite com chocolate e um bolo de padaria recheado de frutas cristalizadas. Também adorava o quase meio cálice de vinho do Porto que a minha avó me dava excepcional e meio clandestinamente, quando ia visitá-la nas férias. Gostava do voluptuoso sabor do vinho e da clandestinidade. E da estranha sensação nas pernas, uma deliciosa falta de forças. Nessa altura era viciada em sensações fortes como estas. Depois curei-me.

Assim, a menina com falta de apetite para as refeições do dia a dia, tinha uma ementa sagrada constituída por passarinhos fritos, vinho do Porto, bolo de frutas com chocolate, tartarugas vegetarianas e… pombos. Já não sei como se cozinhavam. Mas recordo-me de ver o meu vizinho chegar com um extraordinário cinto de onde pendiam lebres, pombos, codornizes, e não sei que mais. Eu era convidada de honra desses jantares, pequena pagã amoral e despreocupada. Convidada de honra, a mais entusiasmada, porque o meu vizinho era uma espécie de guerreiro carregado de despojos e eu a sacerdotisa do altar do sacrifício. Que metia peles, penas, sangue, despojos, arrepios na espinha, estranhos aromas. Não sabia nada dessas coisas, mas sabia o suficiente dessas coisas. Hoje incomoda-me a caça, praticamente não bebo álcool, quase não como carne, passarinhos só vivos e a saltar em torno das migalhas que lhes ofereço, sou quase uma militante em defesa dos que acusam os pombos de todos os males das cidades, e elejo-os acima de tudo como pequenos anjos acima das casas, sacrificados nas nossas calçadas, ou como referentes, mensageiros da paz, do Espírito, etc, etc. Cresci. Civilizei-me. Mas quando passo ao pé da imagem de Leda na Regaleira e olho a pomba que as mãos acolhem e acariciam, eu uno na mais funda memória de mim o mito de hoje com a pequena e cruel sacerdotisa de então. Ao mesmo tempo que sinto entrar em mim pela porta grande todas as minhas partidas partes antes abandonadas pelos cantos dos anos que passaram. E cresço, e cresço, e agiganto-me, e já toco as nuvens. Voo com as pombas, levemente embriagada do excesso de ar com a sensação antiga do vinho do Porto circulando nas veias. Completa de mim.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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