2007-10-17
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Homo cuadratus

Pequeno ensaio sobre as artes do corpo



Um dia tive um sonho em que eu era o homem de Vitrúvio e rodava pelo espaço com o meu pai, que também era uma estrela de cinco pontas. Os nossos corpos apontavam em todas as direcções como querendo chegar a todos os pontos do universo. O ser mais parecido com um ser humano, quando todo o seu ser se expande pelo universo, é uma estrela. Uma estrela é luz porque se dá, porque irradia, toda ela brilha por fora e por dentro, por isso ela não só pode irradiar, mas tem de irradiar. Aos homens e às mulheres, quando forem realmente humanos, vitruvianos, vai acontecer-lhes o mesmo.

Este ser por Da Vinci plasmado em estrela, tanto irradia, tanto tem irradiado ao longo destes séculos, que todos vêem nele o que as suas projecções ali depositam: representação artística, simbólica, geométrica, matemática, mística, puramente técnica, histórica, e ensaística e narrativa, como é o caso de alguma da mais recente ficção… Também eu, apesar do meu cuidado, não poderia deixar de me projectar nele. Valeu-me esse sonho que tive há tempos e que um dia contei.

Voemos com ele até Leonardo. Que nasceu em meados do século XV, em Abril, se dedicou às artes plásticas, e se interessou por áreas que vão desde a engenharia hidráulica, aeronáutica, à matemática, geometria, biologia e fisiologia, passando pela cozinha, e é normalmente dado como exemplo do espírito renascentista: um espírito amplo, vasto, curioso, crítico, onde artes, filosofia e ciência ainda não se separaram, mas onde o humanismo clássico se individualiza e se recusa as “trevas” medievais.

E claro que à luz do nosso tempo conseguimos ver que as trevas medievais não são um apanágio da Idade Média, mas uma das constantes deste mundo que de vez em quando se corporificam em movimentos como a inquisição, o nazismo e as actuais manifestações de eliminação em massa de comunidades, como acontece em África, como aconteceu muito recentemente na Europa, aqui a não muitos milhares de quilómetros. É a presença da sombra que sempre nos tem acompanhado ao longo do nosso percurso.

Por isso Leonardo recusa, na ciência, qualquer tipo de autoridade prévia ou todo o pensamento apenas baseado no temor ou reverência ao poder de alguns. Isto não impede que um pouco mais tarde Copérnico e Galileu venham a ter problemas por causa da sua verificação da natureza heliocêntrica do nosso mundo. Eram as trevas. No entanto a luz move-se, pelo meio de paradoxos como aquele de que a própria razão que no tempo de Leonardo é uma luz no mundo, vem mais tarde a tornar-se, ela própria, porque desgovernada, porque incompleta, porque totalitária, num momento em que já era preciso caminhar para novas visões, um factor de obscurantismo.

No século XIV, como se lê em O Nome da Rosa, não era escandaloso que um abade, perante uma cidade suspeita de heresia, respondesse sobre o que fazer aos seus cidadãos: “Matai-os a todos, Deus reconhecerá os seus”. Hoje já não se diz desta forma, mas vai-se fazendo: em nome de Deus, em nome do território, em nome de raças, em nome do petróleo, em nome sempre de um qualquer medo.

E no entanto aquele glorioso e nu Homem de Vitrúvio foi desenhado há cinco séculos.

Leonardo pintou este ser sobre madeira. Há quem pinte sobre tela, sobre papel, sobre tecido, paredes, portas. Eu vi recentemente um homem de Vitrúvio em tamanho natural, isto é, à medida do corpo humano, impresso sobre seda. É um homem que voa com o ar. Bem precisamos dele, neste mundo difícil e paradoxal.

Para nos salvarmos precisamos de todos os elementos bem equilibrados, assim bem tratando a terra dos corpos, com o rigor da geometria atravessando de traços infinitos a nossa ética, com a leveza do ar e o fogo do amor secando o excesso de água das emoções, mas não as eliminando. Apenas equilibrando, como o Homem de Vitrúvio, um modelo do equilíbrio, apesar do movimento num círculo, de leveza e elevação, mesmo não tendo asas, de humanidade, na sua honesta nudez, de fogo aceso na nossa consciência, século, sobre século, sobre século. Enquanto precisarmos dele como memória de um propósito, por vezes esquecido.

Ofereço esta pequena reflexão como agradecimento àquele que do fundo dos séculos teve a generosidade de trazer até nós esta estrela humana, a recordar-nos que antes de sermos estrelas teremos de ser humanos e nus olhando o rosto desmaquilhado da verdade.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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