2007-02-21
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


“A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar”

Álvaro de Campos

Um cais sobre um palco. Nevoeiro. E a voz, a inesperada voz. Ainda a ouço. Foi, não sei há quantos dias, foi, seguramente há umas semanas. Mas ainda a ouço, ainda lhe sinto as inflexões. Às vezes dou comigo a “inflexionar” como A VOZ. Com a voz? Ou a reconhecer pequenas inflexões suas em intervalos musicais de outras vozes. Como descrevê-la? A voz é de um actor? Ou de Álvaro de Campos? Ou de um marinheiro, deus marinho ou estivador? Comandante de um navio? Ou Fernando Pessoa?

O programa refere um nome: João Garcia Miguel, actor, o intérprete da “Ode Marítima” na Casa dos Dias da Água. Foi lá que ouvi a VOZ. Já acabou, fui ver o penúltimo espectáculo porque me convidaram, e para poder aconselhar os meus alunos. Porque isto de se aconselhar teatro aos alunos sem ver antes, é um enorme risco. Risco para o teatro, risco para um caso de amor ao teatro em que pode tornar-se uma ida ao teatro se o (a)caso for feliz. Tenho alunos que depois de terem visto algumas peças ficaram para sempre rendidos; vão ver seja o que for que eu lhes proponha, se for teatro. Daí a grande responsabilidade. Porque também pode acontecer o contrário.

Por isso, fui ver. Conheço o texto, conheço o contexto. Não sabia da voz. Foi a primeira surpresa. Ainda não se via o actor, já se ouvia a voz, e eu pensei: “Como é que é possível que eu nunca tenha ouvido esta voz?!”; porque a reconhecia; não de a ter ouvido, mas de a ter “reconhecido”. Poderão perguntar-me agora: “Mas é possível reconhecer uma voz que nunca se ouviu?”. Respondo-vos eu que sim. É possível reconhecer uma voz que nunca se ouviu. “Como?”. “Não sei.” Poderia convidar-vos a imaginarem um monólogo de uma hora e meia: a “Ode Marítima” do engenheiro Álvaro de Campos ao vivo e no nevoeiro; por isso, poucas cores. Movimentação sóbria, adequadamente espástica num ou noutro momento, expressão q.b., nunca de menos, nunca demais excepto quando o texto não permite que seja de outra maneira. E a voz. Sozinha, “no cais deserto”, olha “prò Indefinido”, que somos nós, e diz-nos o que vê: “um paquete entrando”, e descreve-se, sem se descrever: “Mas a minh'alma está com o que vejo menos.”. É a voz que o “trai”: ora cheia de “silêncios rumorosos”, ora “desabrochando… num ruído” paradoxalmente “cor de silêncios” … “Soa no acaso do rio” e através desta voz “Chamam por mim os mares.” É um chamamento, “esse grito tremendo de um contador de histórias marítimas que parece soar de dentro duma caverna cuja abóbada é o céu”.

Recordas-te, Voz?:

“ (Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas, E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca, Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras:

Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-yyyy... Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyyy...)”

Já passaram alguns dias, mas ainda hoje “Escuto-te de aqui, agora” e desperta, ainda que alguns sons me cheguem como eco de “um ruído cego de arruaça”, ou de “volante a girar no centro do peito”, como um “clamoroso chamamento”, falando, chorando, gritando, interrogando, evocando, cantando, repetindo, silenciando.

Terminada a representação, apenas me restava “partir como voz”… “No silêncio comovido da minh'alma...”

Afasto-me a cantar como um mar ao longe, mas “a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim...”, a canção é este misterioso magma alquímico criado por um texto, um corpo, um ambiente e uma voz. Se a tivesse ouvido, o engenheiro Álvaro de Campos teria composto uma ode qualquer, talvez uma Ode à Voz, quem sabe?, de pé e num jacto, como costumava escrever.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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