2021-02-03



Risoleta C Pinto Pedro


O que esconde, ou revela, a claridade da lua



É a lua cheia que ilumina esta crónica de uma série sobre lengalengas infantis. Trago hoje uma muito conhecida: “Au clair de la lune”. Nela, Arlequim vem pedir a Pierrot que lhe empreste uma pena para escrever uma “palavra”, queixando-se em seguida de que a vela se apagou e ele já não dispõe de lume em casa. Pierrot não mostra muita vontade de ajudar, e argumenta que não tem nenhuma pena e já está deitado, aconselhando-o a ir a casa da vizinha, que provavelmente poderá ajudá-lo, pois ouve-se na cozinha dela que «on bat le briquet», expressão de múltiplos sentidos, indo do literal, que é esfregar uma pedra de isqueiro, aos metafóricos, que são, por um lado, levar à donzela a luz de uma declaração de amor, e por outro, a consumação da paixão, com sua intensa luz. A verdade é que a vizinha lhe abriu a porta e esta se fechou sobre ambos, não deixando perceber, apenas adivinhar, o que poderia ter acontecido.

Plume significa, originalmente, pena, o objecto com que se escrevia antigamente, que derivou para designar caneta. Parece que em francês antigo existia a palavra lume, que se encontra, foneticamente, muito próxima de plume. Esta canção remonta, segundo alguns, aos séculos XVI, XVII, XVIII, épocas que para além do barroco o antecedem, e dele ainda conservam ecos, sendo que este está este relativamente próximo da estética medieval. Neste poema, algo me soa à poesia de amor provençal com suas metáforas amorosas. Também os cavaleiros do amor (igualmente designados fiéis do amor), que tinham como religião um código de ética amorosa, iniciática e anti-Roma.

Lubin, que uns vêem como Arlequim outros como um monge “desviado”, pede a Pierrot que lhe abra a porta “pelo amor de Deus”, mas à vizinha já faz a súplica “pelo Deus do Amor”, havendo aqui uma inversão que me faz lembrar muito os cavaleiros que usam como lema o Amor, que não é apenas o sentimento, mas o contrário ou a inversão de Roma.

Por outro lado, ele pretende, com a caneta, escrever “uma” palavra. Poderia ser um poema, uma carta, um recado, uma oração, mas não, é uma palavra: será a palavra perdida dos iniciados? Será a palavra Amor, a que Roma é (ou durante tanto tempo foi…) contrária? Será esta a palavra que se perdeu e de que tanto necessitamos? Fala-se tanto e tão desencontradamente e tão inconscientemente, que não admira que a palavra, aquela que poderia ser redentora, relute em se manifestar. Agora usamos máscaras, mas se estas nos protegem dos vírus ainda não foi inventada aquela que nos impede de profanar as palavras que saem das nossas bocas.

Esta canção tinha de ter, como cenário, a claridade da lua, essa que tanto vela como revela. Por outro lado, o seu anticlericalismo, através do monge libertino, e as indesmentíveis metáforas sexuais, afastam-na definitivamente do universo infantil. Contudo, e é esse o aspecto que move o nosso espanto, é a ambiguidade metafórica que permite uma múltipla utilização: infantil, iniciática, satírica, lírica e amorosa. No mínimo. Com possíveis cruzamentos. Ao leitor deixo outras leituras que me escapem.



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