2020-11-11



Risoleta C Pinto Pedro


Do canibalismo à inverosímil gentileza



As lengalengas infantis têm ocupado, actualmente, uma parte significativa da minha atenção e dos meus dias. Um ouvir distraído fica muito aquém da importante mensagem que a maioria contém. Desde as que se constroem com um delicioso nonsense, às que possuem uma sabedoria quase zen, outras ultrapassam insuportáveis limiares de crueldade. É o caso de uma lengalenga francesa onde se narra que um navio com três marinheiros, perdido no alto mar e tendo esgotado os mantimentos, deitou à sorte qual deles deveria ser comido, puro canibalismo de sobrevivência, e o azar saiu ao mais jovem e menos bem nutrido. Que foi salvo pelo sacrifício dos peixes atirando-se em cardumes vivos para dentro do navio a fim de servirem de alimento aos marinheiros. Por alguma razão Santo António pregou aos peixes.

Acredito que, com as imagens poéticas, o ritmo e a melodia, o conteúdo se esbata ou não se apresente no seu horror aos olhos das crianças, que assumem que uma história é uma história e não mais do que isso. Entretanto, vão aprendendo a lidar com o horror do mundo com um método relativamente indolor.

Numa outra, conta-se a malograda e repetida ida do imperador, da sua esposa e do pequeno príncipe a casa de alguém que se assume como o narrador, para lhe apertarem a mão. Esta lengalenga proporciona a aprendizagem dos dias da semana, pois em cada dia o alvo do cumprimento não se encontra lá, por se ter ido embora, o que dá azo à repetição dos seis dias da semana, sendo omitido o domingo. Uma vez lá chegados e não o encontrando, o pequeno príncipe declara que assim sendo, voltarão no dia seguinte. Isto repete-se até ao sábado, pois nesse dia o príncipe declara que uma vez as coisas estando neste pé, não regressarão. É muito significativo, mas deixo a cada um a interpretação:

- Que a família imperial se desloque a casa de um súbdito para o cumprimentar;

- Que o súbdito esteja repetidamente ausente;

. Que caiba ao príncipe menino a decisão de regressar (“puisque c’est ainsi nous reviendrons mardi” e assim sucessivamente até “samedi”), e à sexta tentativa, de não o fazerem mais (“puisque c’est comme ça, nous ne reviendrons pas”);

- Que o domingo fique de fora desta saga imperial.

- Que não haja, que se saiba, consequências de maior para o relutante súbdito.

Talvez lhe ocorra, caro leitor, mais perplexidades para além destas cinco que aqui elenquei, mas o aspecto que me interessa trazer, para além dos já levantados, é esta tão díspar forma de estar no mundo. Do canibalismo à mais inesperada gentileza, ou… passado e… futuro? Oxalá assim seja, quem dera que estejamos perante uma lengalenga premonitória. Já agora, também não custava ao súbdito ir lá um dia receber os cumprimentos dos governantes. Mas admito que se possa tratar de um caso de… memória. Visitas dos imperadores às casas das pessoas nem sempre deram bom resultado; uma coisa é o que dizem que vão fazer e outra é o que fazem. Para além de que as lengalengas são ferramentas poderosas para avivar a memória com o poder da repetição. Contudo, há que acreditar que um dia tudo será diferente e os meninos terão alguma influência sobre o poder do imperador. Assim será. Repetidamente.



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