2020-02-05



Risoleta C Pinto Pedro


"Restauração"



É o título de um livro de poesia de Francisco Soares, recentemente publicado pela editora Sem Nome. No dia da apresentação, por proposta do editor, reuniu-se um grupo de amigos e admiradores em círculo aberto e falou-se sobre o que cada um quis, a pretexto do livro. Aqui deixo a reflexão que eu fizera, decorrente da minha leitura, e de que partilhei ali apenas uma pequeníssima parte:


Deste livro, chamaram-me sobretudo a atenção os aspectos de estilo, porque é algo que enquanto professora e escritora me interessa especialmente.

Para além de que uma consoante que no meio da palavra se maiusculiza, como acontece nesta poesia, não é uma questão meramente formal; é sumo, conteúdo num vaso generoso.

O estilo é, ao mesmo tempo, arcaico e arrojado; o arrojo vem-lhe do próprio arcaísmo. O poeta põe a originalidade no lugar do erro elevando-o à categoria de criação. Reabilita o erro e arcaíza a modernidade.

O "m" em particular, revoluciona o cânone: separa palavras e introduz-se, como intruso, onde não era esperado.

Por sua vez, a surpresa da palavra novel escrita obriga-nos a reaprender a ler, a voltar atrás para rever e reler a palavra, a olhar a letra que não esperávamos naquele lugar. Contemplá-la com olhar novo, inocente e puro como se pela primeira vez, como preconizam Telmo e Platão e os cabalistas em geral.

Tal Aldous Huxley, em A Arte de ver, relevando o lado material da luz incidindo sobre as letras com sua influência na mente:

«a claridade e definição das letras iluminadas pelo Sol exerce uma influência muito saudável sobre a mente, a qual perde a sua habitual ansiedade tensa relativamente à visão e, em vez disso, adquire uma confiança despreocupada na sua capacidade de interpretar os sensa que lhe advêm dos olhos.»

Quanto a Platão:

«Sócrates:

— A claridade, Protarco, ser-te-á dada pelas letras do alfabeto. Procura-a naquelas que soletraste na infância.»

(PLATÃO, Filebo) E

m criança eu olhava para as letras com este sentimento de mistério e milagre, desconfiando, por vezes, no silêncio dos meus pensamentos, que poderia não ser muito boa da cabeça, não imaginando que mais tarde Platão e António Telmo me tranquilizariam.

Quanto à sintaxe, ela é muitas vezes camoniana, digo, na busca da latinidade.

É das mais originais, estranhas e belas poesias que já li. Não se parece com nada, ao contrário de muitos poetas de hoje, ostentando um modernismo que se vai imitando a si mesmo, nas várias vozes, a ponto de já não se saber, mas por vezes se suspeitar, onde começou o ovo.

Diz o editor que o livro é pequeno, e ainda bem que o é, pois é tão rico, denso, intenso e profundo, que nos sacia. Fruto cheio de sumo a escorrer.

Não contém metáforas banais, e muito menos as pretensamente anti-banais da moda com sabor a déjá-vu. A estranheza é mesmo estranha e não se entranha à primeira. É uma poesia exigente com o leitor.

Também a pontuação desarruma o cânone. Por exemplo, a vírgula, liberta do lugar marcado pelo prontuário, salta, rebelde, para o outro lado que a gramática proíbe.

Pelo uso não normativo da língua, o poeta cria como se tivesse um prontuário próprio, oculto.

Quanto à estrutura das palavras, dobra consoantes, maiusculiza letras, secciona as palavras à medida da sua necessidade de sentido e gosto, como é o caso de «a bem soado», assim transformando o gesto em som, o que não deixa de fazer sentido.

Não será por acaso que um dos poemas do final se chame "Pequena História da Língua", pois o livro inteiro contém vários passos em vários tempos, do passado ao futuro. Pelo meio da música, que não sendo obsessiva, cria momentos de ritmo e embalo e a música irrompe canónica em rima:

    «Partilho o pão da ausência. Agora sei

    Melhor que não há dor, que a morte é um parto

    E o corpo uma lição de amor. [...]»
Voltando a olhar as letras e as palavras com a atenção e a luz de que falam Huxley, Platão e agora António Telmo na sua Gramática Secreta da Língua Portuguesa: «As letras, enquanto formas gráficas do som da voz, não são tais como se apresentam por simples convenção ou até por inércia da tradição[...]»

E mais à frente refere «a existência de uma linguagem escrita independente da linguagem oral, embora a ela ligada por uma misteriosa correspondência interior.»

Apresenta as letras como «linhas que medem a terra».

Neste sentido, e não alienando a origem musical da nossa poética, há que olhar para estes poemas como poesia visual, geometria no espaço, isto é, como tendo uma dimensão quase geográfica, para além da sonora. Por isso, entreguei-me a um exercício ou jogo, como queira o leitor chamar-lhe, em que pegando aleatoriamente em palavras que neste livro se apresentam ao contrário do cânone, criei uma espécie de poema. Oficina ou brincadeira poética.

É o caso, por exemplo, de «sinnos», que dobram a consoante "n" como que a deixar reverberar, nasalada e internamente o som; «a palavra «soave» que trocando o "u" pelo "o" torna a suavidade sonora; «orizonte», que perdeu o "h", talvez para não se interpor, pela sua altura, com aquilo que a palavra designa; e ainda «falla», que dobrando o "l" reproduz o emissor e o interlocutor olhando-se e escutando-se em espelho, para que a surdez não impere, com o auxílio da letra e do olhar. Uma espécie de arte de ver:

Poesia Visual

      Beiraeva alllumeava sonhosa noite; soave(s)* sinnos calavam
      -Se
      .Rey mamtém creança
      AbSoluta
      (no) orizonte (da)
      ;distância
      (um ao outro)
      Falla.
*As palavras entre parênteses são “intromissão” minha.



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