2019-09-25



Risoleta C Pinto Pedro




Peregrinos da Liberdade



Ricardo de Saavedra é jornalista com um extenso currículo, e escritor. Há uns anos, a vida pô-lo em contacto com o Dalai Lama, que teve o privilégio, mas também o mérito, de entrevistar. Mergulhou profundamente no conhecimento deste homem excepcional e foi a Dharamsala, onde se daria o encontro, a convite do entrevistado. Não me perderei em pormenores que podem ser encontrados no livro que com todo o material reunido acabou por publicar em Março passado, muitos anos depois do acontecimento, mas qualquer momento é oportuno para levar ao mundo a crónica da opressão de um país. Até porque, apesar de todas as diligências que o Dalai Lama e os tibetanos, assim como os amigos do Tibete vêm fazendo há anos, o problema parece sem fim à vista.

Apesar de ter comigo o livro desde que saiu, apenas esta semana consegui tempo para ler as cerca de quatrocentas páginas. Leitura torrencial, pelo interesse que o tema me desperta, e pelo estilo fluente e vivo do autor. Escrita desempoeirada, extensamente informativa, mas solta e elegante, com um leve e natural sentido de humor que o aproxima do seu entrevistado. A leitura foi alternando entre sorrisos e dor. Por muito que se conheça o amargo caminho que os tibetanos têm percorrido desde a ocupação chinesa, é sempre difícil depararmo-nos com a narrativa da crueldade, do tratamento bárbaro dado aos tibetanos que permaneceram no seu país, aos monges, às mulheres, às crianças... mortes, violações, tortura sem limites, para lá do imaginável.

O livro folheia-se alternando descrição e narração num estilo entre o jornalístico, o histórico e o testemunhal, dando conta, com pormenores preciosos e uma seccção de fotografias, quer da vida do Dalai Lama, quer da história e cultura do Tibete, desde os tempos mais remotos até à actualidade. Envolve profunda investigação e um olhar ao mesmo tempo isento e não despido de emoção, o que não é confluência fácil, mas que aqui acontece. O olhar é ocidental, curioso, simultaneamente não impedindo que a estranheza o impeça de compreender de modo empático um povo habitando o longínquo e designado tecto do mundo. Não deixa de ser crítico, e ao mesmo tempo compreensivo, da distância fazendo proximidade.

A atitude evoca-me outras leituras que fiz recentemente, de Jaime Cortesão, sobretudo a passagem em que atribui aos portugueses da época dos descobrimentos, a criação de um espírito de relatividade entre as culturas, entre os conceitos de bárbaro e civilizado, nomeadamente em relação à cultura chinesa, perante a qual se inclinaram reconhecendo o que ela continha de requintado. A barbárie, na época, estava ainda distribuída sem grandes diferenças entre povos, e o que era bárbaro, nos chineses, não provocava, nos europeus, tanto arrepio quanto hoje, que a Europa, apesar das muitas arestas que ainda tem para alisar, evoluiu um pouco, se abstrairmos das tentativas de extinção de grupos como foi a segunda Guerra Mundial e outras mais recentes, de outros quadrantes não muito longínquos, que se lhe seguiram. Mas não é sem uma certa vergonha que poderemos recordar a responsabilidade dos portugueses, na altura, na universalização e secularização da História (onde entram com igual direito todos os povos, tendo o eixo do Mundo deixado de se fixar no Mediterrâneo), e a atitude dos nossos governantes, a Assembleia da República incluída, aquando da visita do Dalai Lama a Portugal, com um envergonhado encontro do então presidente da República com o Dalai Lama no Museu de Arte Antiga, para que a China não soubesse, não se livrando mesmo assim o país, de levar uma reprimenda. Ficamos sem compreender onde está o igual direito de todos os povos tão remotamemte reconhecido, tão vergonhosamente hoje ignorado. Muito tempo foi necessário para que, timidamente, e não todos, os países fossem protestando. Também esse difícil processo do teatro das Nações é clarificado e denunciado neste livro corajoso e frontal, testemunho do encontro de dois homens que tinham tudo para serem diferentes, mas que permitiram que entre eles nascesse uma cumplicidade empática que conduziria ao nascimento de um livro, tão abundante e fiavelmente informativo, quanto apaixonado.

A figura humilde, paciente e sorridente do Dalai Lama percorrendo o mundo na defesa quer do seu povo quer da Terra, mas cuidando para não tratar com hostilidade os chineses, com quem tudo tem feito para cooperar até ao limite do impossível, apesar das diferenças, faz-me lembrar o movimento actual das crianças e adolescentes, eles já impacientes com o comportamento dos adultos em relação ao planeta. O «simples monge», como se refere a si próprio, tranquilo e pedagógico, está a dar lugar a impacientes crianças cansadas de tanta loucura, de tanto comportamento suicida. Já não é só o Tibete, é o Mundo. Um monge, lider de um país, deposto, e grupos de crianças saturadas de nós, ou dos nossos comportamentos, percorrem o mundo como peregrinos da liberdade, até que os governos, as assembleias os reconheçam e ouçam e finalmente percebam que as palavras de diplomacia hipócrita já não bastam, é preciso agir enquanto é tempo. As revoluções já não são o que eram, e ainda bem, porque não precisamos de mais do mesmo, mas de algo diferente, realmente eficaz e a começar dentro de cada um. Caso contrário, teremos os governos e os impérios que merecemos.

Ricardo de Saavedra, com seu generoso e belo livro, deu um precioso contributo para o nosso acordar.

Peregrino da Liberdade, Dalai Lama XIV, Ricardo de Saavedra, Ed. Quetzal, Lisboa, Março de 2019

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