2019-09-11



Risoleta C Pinto Pedro


Memória e olfacto



O LUGAR DA MEMÓRIA...

... dos odores, esses antídotos das dores.


Diz, quem afirma saber (que eu não confirmei, mas que faz sentido, faz...) que o olfacto partilha, com a memória, o mesmo lugar do cérebro.

Pela parte que me toca, não há mais poderoso botão de despertar de recordações do que o olfacto. O que partilho com os meus cães (e, suponho, com todos os cães normais), mas eles vão mais longe. Olfacto é memória, é ele que lhes permite regressar a um local longínquo de que se tenham afastado, mas também é fonte de conhecimento. É por isso que um passeio que poderia demorar meia hora leva mais do dobro, porque todo o cantinho tem de ser cheirado, não só porque lá estão vestígios de ontem, mas também de outros que por ali terão passado.

O passado tem sido bastante vilipendiado, por ser acusado de nos estragar o nosso futuro. Mas o único problema que há com o passado é a nossa dificuldade em situá-lo no tempo. Recordar o passado, o que teve de bom e de mau, saborear o bom e recordar o mau não traz mal ao mundo. Aprender com ele, pode mesmo ser a melhor coisa que nos acontece. O problema é que insistimos em confundi-lo com o presente e assim o reproduzimos no futuro com os medos que projectamos para o tempo que ainda não aconteceu, mas que, com um bocadinho de esforço da nossa parte, tem toda a probabilidade de se reproduzir.

Temos uma imaginação prodigiosa e poderosíssima, que podemos enriquecer com o que aprendemos do passado e sonhamos para o futuro. O problema é que guardamos demasiadas imagens infelizes e esquecemos demasiados cheiros felizes. Fizemos uma espécie de lobotomia da memória olfactiva, porque desvalorizamos o olfacto. E vamo-lo perdendo por falta de treino, por uso de substâncias tóxicas e nocivas, ou por falta de tempo e atenção. Por desvalorização de um sentido que consideramos tão pouco... nobre. E no entanto, precisávamos de cheirar mais. Não propriamente como os cães, as bases das paredes, dos muros e das árvores, mas elevando a cabeça: as folhas, o vento, os fumos das chaminés. Mas também o pelo dos animais que amamos e a pele das pessoas de quem gostamos.

Se há cheiro que me encha de felicidade é o das lareiras, quando passo nas ruas frias de Dezembro. Ou dos eucaliptos e dos pinheiros. Ou da proximidade das padarias e do aconchegante perfume de um bolo quente que enche a casa ainda antes de sair do forno e aí permanece. Ou da colónia de lavanda e do sabonete igual, das camomilas na Primavera, do rosmaninho pela Páscoa, do chocolate quente no Inverno, da minha pele salgada no Verão à saída da praia, pelo mar, pelo sol, da terra molhada em dia de chuva, das maçãs maduras que teimam em manter o odor, o perfume deliciosamente citronado do limão, as maçãs assadas no Outono, as compotas ao lume, os marmelos maduros nas árvores.

Uma das capacidades perdidas por algumas pessoas de idade, com ou sem Alzheimer, é o olfacto. Por isso, algumas terapias para o Alzheimer passam pela aromaterapia, pelo uso das essências. Mas acredito que todos podemos antecipar-nos na prevenção, estando atentos ao cheiro das manhãs, ao da chegada do Outono, ao aroma que se desprende dos livros novos e dos antigos, às infusões, esse mundo infinito de aromas, e até, desculpem a superficialidade, aos detergentes, aos amaciadores...

Não gostaria que se fizesse uma lobotomia da memória baseada em preconceito e exclusão. Posso sentir-me feliz num corredor de uma grande superfície onde haja frutos, perfumes ou detergentes, mas também as tintas têm algo a dizer em termos de evocação.

Não sei se pessoas amnésicas são felizes, mas acredito que a perda do odor constitua uma tristeza considerável para um ser humano. Não consigo concebê-la para um cão ou um gato, que se sentiria totalmente desorientado no mundo, como um humano que não possuisse visão.

A nossa memória também pode ser posta ao serviço dos outros, não é património exclusivo de cada um. Acredito que um fabricante de perfumes que ponha no que está a criar o seu coração, recue até à infância mais pura e aí encontre, na palma da pequena mão, o perfume da mãe.

LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS