2018-10-31



Risoleta C Pinto Pedro


Uma história que não queria contar



Esta crónica é-me muito dolorosa. Adiei meses, para não a escrever a frio. Hoje, senti que era o momento de não adiar mais, ou o melhor seria desistir dela.

Vou tentar limitar-me aos factos. Se conseguir.

Um gatinho com um problema grave no pulmão andava a ser acompanhado, até ao momento em que uma radiografia revela que a situação era sem retorno. Foi aconselhada a deslocação a uma clínica xpto, só por uma questão de consciência, mas sem grande esperança. Era uma sexta-feira, o médico xpto não estava, agendou-se para segunda. Minutos mais tarde, um telefonema sugere que o gatinho vá só para uma consulta de avaliação e logo se verá. Assim se faz. Imediatamente. A veterinária que o atende diz que está muito mal (o que já sabíamos), terá de ficar no fim-de-semana para fazer n exames. Ficamos preocupados, segundo a médica que o seguira, até uma simples extracção de sangue podia ser arriscada, devido à fragilidade em que se encontrava. Os exames previstos incluíam a extracção e muito pior. Já se falava em anestesia e operação. Perguntámos se não seria possível pensarmos até ao dia seguinte. Havia uma situação traumática anterior de um gatinho que dera entrada no hospital, subitamente doente, fora operado indevidamente e já não saiu de lá vivo. Não queríamos precipitar-nos. Só precisávamos de pensar, sentir, e no sábado, que era já o dia seguinte, tomaríamos uma decisão. A reacção foi agressiva, culpabilizadora, ácida, irónica, mal educada. Em todo o caso, totalmente desadequada. Desapiedada, fria, quase... nem digo mais nada. Não sabemos muito bem como resistimos à pressão. Conseguimos, com muita dificuldade, dizer que não, que o levaríamos, não queríamos deixá-lo assim, a frio, sem tempo para pensar. Já estávamos na recepção a pagar a consulta, quando fomos chamados, porque o tal doutor xpto queria falar connosco. Afinal, estava disponível. O que fez foi continuar a pressão, a culpabilização, a agressividade. Cinicamente. Foi muito duro, mas conseguimos resistir. Afinal, só queríamos uma tarde, uma noite, com o gatinho, em casa, a sentirmos, a senti-lo. Novamente na recepção, foi-nos imposta uma assinatura num documento onde se afirmava que o gatinho ia ter indevidamente alta sob a nossa responsabilidade. Ainda perguntámos que alta, se não fora hospitalizado, se fora apenas a uma consulta? Mas já estávamos tão exauridos e tão tristes, que assinámos para não discutirmos mais, para não ficarmos ali mais tempo, para sairmos dali depressa, como quem foge... do inferno. Sem olhar para trás. No dia seguinte conseguimos uma consulta com uma vet conhecida e de toda a nossa confiança. Disse-nos que ele estava muito mal, que não duraria muito, muito provavelmente não aguentaria os exames que queriam fazer-lhe e muito menos a operação. O mais certo seria na segunda-feira, se ele lá tivesse ficado, termos menos um gatinho e uma factura avultada. O que esta vet fez foi, com medicamentação adequada prolongar-lhe a vida com qualidade, enquanto isso foi possível. Teve mais uns dias, mais de uma semana, em que viveu com qualidade e amor. Algum desconforto físico, mas não excessivo. Quando chegou o momento limite, partiu em paz. Foi muito doloroso acompanhá-lo naqueles dias sabendo que iria partir em breve, mas foi reconfortante saber que ele estava a receber o máximo de cuidados e o máximo de amor. Uma parte dele estava desconfortável, outra parte estava feliz. Sentia-se. Sofremos muito durante esses dias, mas nunca duvidámos da decisão que tomáramos, ficámos com muitas saudades, mas ficámos em paz. Contentes por termos resistido à pressão do poder e do medo, por ter sido mais forte a voz do amor. Conto esta história verdadeira quase sem filtro, porque pode vir a ajudar alguém ou algum animal. Poderia dizer muito mais, mas não o faço. Há tentações a que se deve resistir.

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