Décimo quarto ano de Quarta-Crescente
Com a 411ª crónica entramos no décimo quarto ano de publicação da "quarta crescente".
A UNICEPE agradece mais uma vez, desta forma singela, à escritora Risoleta C Pinto Pedro a sua generosa cooperação.
Porto, 23 de maio de 2018

2018-05-23



Risoleta C Pinto Pedro


Mudança, nova era, impaciência, pureza...

Vamos por partes: Durante muitos anos não toquei em carne. Hoje, mais flexível, já não afirmo nunca, custa-me, cada vez mais, a ideia de comer carne de animais tão próximos, tão gentis, tão amorosos... Vejo imagens de verdadeiros campos de concentração para animais e o coração encolhe-se de dor. Vejo publicidade a um restaurante representada por um porquinho no espeto e controlo o vómito moral. E as lágrimas.

Por mim, se fosse seguir estes impulsos, andaria por aí, militantemente, a combater o uso dos animais para alimentação. E isso não estaria errado. Aliás, considero que quem o faz tem um papel determinante na história e no decurso dos acontecimentos. Mas não tenhamos ilusões. Vivemos um momento de charneira. Um momento em que os que vivem da morte e do sofrimento dos animais ainda não conseguem ter uma alternativa. Por uma questão de incapaciade de visão, incapacidade de mudança e porque os tempos ainda exigem que assim seja. Não é possível mudar tudo de repente. Essa é a natureza dos furacões, não da humanidade. Ao mesmo tempo, aqueles que sentem na pele esse sofrimento, têm dificuldade em controlar o ódio pelos outros, confundindo pessoas com hábitos e comportamentos. Alimentam com ódio o ódio que combatem. Isto vai durar ainda algum tempo. Estamos destinados a conviver amorosamente com os animais e com as plantas e com os objectos e com o planeta, sobre isso não tenho dúvidas. Até uns com os outros. Estamos condenados à evolução. Mas não vai acontecer a todos ao mesmo tempo e não será pela via do combate. Não se combate a guerra com a luta, mas com o exemplo e paciência. Um dia todos os animais serão tratados com humanidade, o que não significa que sejam tratados como humanos. Porque não o são. Um animal não aprecia mais um sofá de couro do que uma manta confortável. A um animal é indiferente comer num prato Vista Alegre ou num Tupperware, e não apreciará mais ir a um cabeleireiro de luxo do que ser escovado amorosamente pelo seu amigo humano. Os humanos também têm o direito a serem tratados como humanos e contudo sabemos que isso não acontece com uma considerável parte da humanidade. Os meus animais não são mais felizes se eu lhes permitir comer comigo à mesa. Mas serão mais saudáveis se eu não lher der comida de segunda cheia de intensificadores de sabor e corantes. Isso é amor. Os meus cães são completamente indiferentes ao "direito" a entrarem ou não num restaurante. Desde que sejam bem alimentados, tenham exercício e presença firme e carinhosa. Desde que sejamos honestos para com eles. Canalizamos hoje, com exagero, para os animais, a nossa frustração pelo que ainda não conseguimos fazer pela humanidade. Depositamos neles as nossas angústias, ambições desmedidas e frustrações, como já fizemos com os filhos. E fazemo-los adoecer, deprimir.

Praticamente não como carne, mas se ma oferecem como um gesto de amor, não a recuso. E não censuro quem o faz. É preciso ultrapassarmos o impulso das crianças mimadas que querem e já, indiferentes ao querer e às circunstâncias do outro. Os que não comem carne podem não ser melhores nem mais puros do que aqueles que ainda o fazem. O mundo é um lugar paradoxal e o tempo que vivemos é particularmente assim. Pessoas de diferentes visões precisam de aprender a viver lado a lado sem se odiarem, sem se desprezarem. Todos fazem parte do processo. E aquele que hoje come bifes pode, um dia, vir a ter um gesto muito mais significativo de amor pelo planeta do que outro que olha, horrorizado, os comedores de carne como seus inferiores. Isso não impede que se converse, que se defenda pontos de vista, que se explique, que se mostre, que se seja pedagógico. Mas a pedagogia ao pontapé apenas tem tido efeitos de curto prazo, gerados pelo medo. Por vezes, efeitos inversos do que se pretende Não é disso que necessitamos, sim de visão larga, diplomática, humana. Essa, sim, transformadora. E lenta. Mas duradoura.

Entretanto, choremos pelos pobres animais sacrificados, pela humanidade em sofrimento, choremos por nós e pela nossa ignorância. E façamos a nossa parte. Talvez consigamos salvar e dar dignidade animal a alguns animais, talvez possamos ser mais fraternos em relação aos nossos irmãos humanos. Talvez possamos olhar um pouco mais para nós e proporcionarmo-nos algum cuidado e ternura. Talvez, assim consigamos ir contribuindo para alguma mudança. Operativamente. Inteligentemente. Não às cegas ou a disparar em todas as direcções. Ainda alguém se magoa... mais.

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