2018-04-04



Risoleta C Pinto Pedro


ÉTICA E TOPONÍMIA

Foi por um destes dias que o Google me informou acerca de uma efeméride a que eu não "chegaria sozinha". Trata-se do nascimento de John Harrison, um relojoeiro autodidacta, inventor do cronómetro marinho. Um benfeitor da humanidade, que com o seu invento evitou, segundo o El País, «a sangria de mortes que os naufrágios e os barcos perdidos ocasionavam». Este filho de carpinteiro nascido em finais do século XVII, à força de montar e desmontar relógios, acabou por chegar à invenção salvadora.

Nasceu num dia 3 de Abril, dia e mês da partida de um célebre "marinheiro" chamado Agostinho da Silva.

Esta notícia do Google poderia, como a maioria das outras, ter-me passado ao lado, se não se desse o caso de, há menos de meia dúzia de dias, ter visto em Paris, numa das lojas que antecedem o museu do Louvre, a ampliação da maquinaria de um relógio, o que me levou até à memória de meu avô autodidacta, o qual não sendo carpinteiro, mas tendo o nome do mais célebre de entre eles e o seu "savoir-faire", também foi a partir de um lugar remoto, como era, no início do século XX, a planície Alentejana, com o auxílio de um curso por correspondência, que fez, ele próprio, o curso de relojoaria.

Acontece que há menos de um mês, a minha tia, sua filha mais nova, me fez oferta desse precioso curso em fascículos, que para mim tem o valor da descoberta do primeiro mecanismo do mundo. Nessa remessa de preciosidades de meu avô vinham também muitas fitas e rolos que constituíam os suportes com que nessa época se gravavam e reproduziam os sons. Acompanhavam-nos vários aparelhos, infelizmente por uma ou outra razão, inoperacionais, mas para mim com o valor de aceleradores de partículas. Raros deviam ser estes aparelhos à época, mais raros ainda no meio do Alentejo, e totalmente improváveis na posse de um pequeno proprietário de casas e terras, agricultor e comerciante, com um modesto estabelecimento de panificação, onde ele próprio fabricava o pão que vendia.

Acontece também que entre essas fitas se encontram gravações domésticas familiares que viajaram entre Portugal e Moçambique, onde se encontrava a filha. O meu avô não se limitava às cartas, enviava até ao outro continente o som das vozes, os cantos tradicionais e de Natal, mensagens de cada membro da família e por essa mesma via cá chegavam os sons de África. Mais caixas sonoras viajavam entre cá e lá: um outro curso por correspondência, este de francês, que ele, após estudo, ia mandando à minha tia, com quem partilhava o gosto pelo saber.

Todas estas memórias são de tempos que não vivi na totalidade, mas cujos objectos já povoaram a minha infância, porque por lá andavam em casa de meus avós, que, pela estranheza e pela própria quantidade, na época, mais se assemelhava a uma loja de artigos eléctricos, com fios espalhados pela casa, instalações eléctricas por todo o lado, ventoinhas, rádios, gravadores e leitores áudio, microfones, relógios desmontados... televisão não havia enquanto não existiu no país, mas passou a haver muito cedo, espantosamente (ou talvez não, pelo perfil deste avô...). E revistas, livros, jornais. Numa casa não pobre, mas modesta, embora opulenta de conhecimento. Ir da Estremadura, onde vivia então com os meus pais, a esta aldeia do Alentejo, perto da raia, nas férias, era como viajar para o futuro.

Mas era ao estudo autodidacta do francês que eu queria chegar, que já estou a afastar-me do tema com que dei título à crónica. Também em A Ideia de Deus, Sampaio Bruno conta que o pai, José Pais de Sampaio, enquanto esteve nas cadeias da Relação do Porto, estudava, trabalhava, aprendia francês.

E sendo as conversas como as cerejas, por aqui chegamos, finalmente, ao título da crónica, que tem a ver com a razão pela qual o pai de Sampaio Bruno esteve preso: o facto de não ter denunciado colegas por uma sublevação pacífica devido a maus tratos recebidos. Colegas do Batalhão de Sapadores nº 8, entretanto impiedosamente castigados até à morte, cirurgicamente, com vergastadas bárbaras rigorosamente aplicadas nas partes mais dolorosas do corpo. José Pais de Sampaio foi absolvido em Conselho de Guerra por não se ter provado que tivesse auxiliado a insubordinação. De facto, assim fora, apenas não procedera à delação. No entanto, o Supremo Conselho de Justiça Militar, sem a presença do réu, que para tal não foi ouvido, condena-o a seis anos de degredo em África. Indultos sucessivos reduzem a pena no espaço e no tempo, tendo esta sido passada entre o Limoeiro e a Cadeia da Relação. Acrescenta Sampaio Bruno:

«meu pai pedira justiça. Após cinco meses de silêncio, o promotor da Regeneração dignara-se, enfim, responder-lhe. Ao sargento despachava assim o marechal: "Não pode ter lugar o que o suplicante requer." O suplicante requeria que lhe não aplicassem uma sentença baseada na prova testemunhal aduzida contra... outrem.

Em pleno fulgor emancipatório da Regeneração, a qual proclamava que vinha aplacar rancores e suavizar amarguras, foi o preso por culpa alheia transferido dos cárceres do Limoeiro para as cadeias da Relação do Porto.»

O «promotor da Regeneração» era o duque de Saldanha, Presidente do Conselho. A Regeneração, que pretendia o progresso do país, continuava os processos inquisitoriais dos momentos mais negros do passado. Os responsáveis morais e instrumentais dos assassinatos ficaram impunes. Um inocente foi parar à prisão sem ter podido defender-se.

Também no dia em que escrevo, 3 de Abril, partiu um ser que, embora não tendo conhecido bem, sei que, apesar da sua diferença, ou deficiência, tinha a enorme qualidade de reunir em torno de si uma família, como se possuísse (e não possuiria?) um poder de atracção que todas as diferenças anulava e elevava o que de melhor cada um possuía. Não era produtivo e dependia dos que cuidavam dele, contudo a sua ausência é sentida como uma imensa catástrofe, a perda da riqueza da família, uma ruína.

Uns têm estátuas e nomes em avenidas e praças. Outros, heróis anónimos, têm o esquecimento. Não defendo que se ande constantemente a mudar a toponímia em função das revoluções e muito menos que se destruam obras que representem "personas non gratas". Mas defendo que se diga e escreva que muitos dos reis coroados das nossas praças vão nus. E que alguns carpinteiros, relojoeiros, escritores, pessoas simples ou simples... filósofos são a base da nossa cultura, da nossa civilização, da nossa ética. E permitem-nos, ainda, olhar a humanidade com esperança. Apesar de tudo.

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